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sábado 23 novembro 2024
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Sonhando sobre as Águas – Claudio Vogt

Sonhando sobre as Águas

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(FOTO: prof. Rogério Machado / Rio Bonito – Sarandi – RS)

………Viver e morrer nas águas do BONITO parecia ser o destino da Juventude Sarandiense, nos inesquecíveis anos 50 e 60… Pescar, nadar e caçar eram atividades de lazer indispensáveis. O Município possuía em torno de 5.000 habitantes. A Cidade era como uma “aldeia grande”. Éramos unidos. O óbito de um Cidadão era anunciado, demoradamente, pelo sino da Igreja Matriz. À noite, o Guarda Noturno apitava… O perigo, para mim, era anunciado pelo canto do Bem-te-vi…

………Minha terra natal não possuía asfalto para nenhum lugar. Em alguns trechos, os passageiros precisavam desembarcar. Sem jornal e TV, vivíamos os últimos anos da Era do Rádio. Os adultos escutavam várias… A FARROUPILHA transmitia uma novela de grande sucesso: “O DIREITO DE NASCER”. A cultura chegava, também, pelos Padres Italianos e pelos Médicos. Estes eram líderes políticos. Mas chegava, principalmente, pelo Cine Guarany e pelo GINÁSIO SARANDI.

………Após a missa da noite, os Padres jantavam, embarcavam numa KOMBI e íam ao Cinema. Isto permitia conversarmos com eles sobre os filmes. Todos eram competentes. O Padre LUIZ VIGNA, nascido em FONZASO (ITÁLIA), acumulava, várias missões: Diretor, Tesoureiro, Professor de INGLÊS, GEOGRAFIA… E, ainda, rezava missas na Igreja N S de LOURDES. Ele nos ensinou a gostar do Idioma INGLÊS, Geografia… Se hoje amamos o BRASIL e a AMÉRICA, ele é um dos “culpados”… Ensinava as coisas da AMÉRICA DO NORTE com entusiasmo. Obtinha silêncio total. Tudo era novidade. O Oeste Americano com os índios perigosos. A CALIFÓRNIA rica e culta. As Montanhas Rochosas e as cascavéis. Os grandes lagos e as fábricas. A LOS ANGELES do Cinema. NOVA YORK, a Capital do Mundo. O RIO MISSISSIPI, que cortava o País de Norte a Sul. O pensamento voava… A imaginação não queria saber de porteiras…

………Devo reconhecer que aquelas gerações eram realizadoras. Os pátios dos fundos das casas foram transformados em laboratórios de experiências. O PEDRINHO WEINGARTNER e seus amigos construíram um Forte Apache (com ripas) de 7 metros de diâmetro e 5 de altura. Uma obra prima! E um cinema, cheio de fantasia… Os filhos do Dr JOÃO OLÍMPIO construíram um “campinho”. Os do HELTON KLEIN, também. Fizemos espingardas de madeira, inspirados nos rifles do Xerife. Brinquedos, espadas, bodoques, gaiolas, viveiros… Tentei fazer um barco (com dois andares e janelas)… O Carpinteiro me levou a sério. O “Seu TOCHETTO” era boa alma. Mas me convenceu: “O nosso rio não é navegável. O BONITO é pequeno!” Mas quem é grande? O que é a grandeza? Foi honesto, sincero, nobre… A espécie dele está desaparecendo!

………No SARANDI, saber nadar era uma coisa natural. Só as pedras não nadavam. Comecei a nadar, aos seis anos, no último mês, do último ano, da década de 50… Correndo uma série de riscos, imitando um cão pequeno (cachorrinho), na margem esquerda do rio… Só o cheiro da natureza já pagava o ingresso! Havia, por ali, uma pobre moça lavando roupas. A Cidade preparava-se para o Natal. BRASÍLIA, transformada em canteiro de obras, recebia os últimos preparativos para a inauguração. Era o assunto do momento. Uns estavam a favor. Outros, contra, devido aos grandes gastos… Os Padres subiam ao púlpito, afixado num pilar, à esquerda dos fiéis. Posicionavam-se sobre a efeméride do Presidente JUSCELINO… SARANDI também era BRASIL! E foi assim que, sonhando sobre as águas, meio distraído, meio alegre, deixei os anos 50 me escaparem. Sem que eu concordasse, entraram, para sempre, na “Estância da Saudade”… Quanto mais turvas as águas de agora, mais forte a saudade daquela hora!

………Para aqueles que já “iam na aula”, o “tema para casa” era simples. Podia ser feito em poucos minutos. Na prática, nossas tardes eram destinadas ao lazer… no “palco da natureza”. O Rio BONITO, a vegetação ciliar e os belos potreiros formavam um pequeno santuário ecológico. Um patrimônio de grande valor! O Povo deposita, certamente, grande esperança no trabalho do IBAMA, da ASAPAN, da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, dos Escoteiros, Estudantes e Voluntários… A “camiseta pesa”. O trabalho é árduo. A causa é nobre. Honrosa!

………Há gente que não acredita. Que não compreende… Qual foi o presente que o RIO NILO deu ao mundo? Deu um País! “O EGITO é uma dádiva do NILO”. E PORTO ALEGRE? O que seria sem o RIO GUAÍBA? E o BONITO, cujo nome oficial é CATURETÊ, o que proporcionava naquelas tardes fagueiras? Lazer (pescaria, banho, natação, caminhada…), farta alimentação (jundiá, lambari, bisata, tambicu, sardela, cascudo, traíra,…), água para os homens e animais, pássaros (Bem-te-vi, João-de-barro, Sabiá-de-peito-roxo, Quero-quero, Canário amarelo, Canário cinza, Sangue-de-boi, Saíra azulada, Saíra 7 cores, pombas diversas, Gralhas,…), frutas nativas, integração social, união familiar, mel das abelhas mirins, material para pesquisa científica, pedras e forquilhas para bodoques, água para lavar roupa e irrigação, lenha, madeira para fazer tábuas, flores (como a SARANDI, abundante. Deu nome à Cidade)… Sonho voltar ao local onde pescava e nadava com meus familiares… Pena que cortaram o Umbu! E a deslumbrante saíra 7 cores? Faz tempo que não vejo! Por quê?

………O Rio da nossa infância apresentava as características seguintes: perigoso para quem não sabia nadar, água potável na maior parte do ano, água barrenta nos dias de chuva, já era castigado pela erosão, natureza semi-selvagem (intocada), trechos fundos de um lado e rasos do outro, barrancos bons para salto (“bico”), serragem da laminadora no balneário principal – a “Curva”, áreas para pique-nique, corria um trecho aos pés de um monte com mata, vários locais para banho e pescaria, vegetação exuberante… Será que nós possuíamos consciência do valor destas coisas? Quanto vale um rio limpo? Será que os homens sabem a importância de um rio vivo para uma Cidade? As pessoas que vivem longe da natureza são felizes? Elas são vidas ou sub-vidas?

………Na chuvarada de 69, fui visitar a Curva do BONITO. Faltava 15 cm para ele transbordar. A água descia veloz, volumosa. Batia nos barrancos e montes. Formava perigosos redemoinhos. Parei a um metro da margem. Quem caísse ali jamais seria encontrado! Caso houvesse um barco, a fúria das águas não deixaria “tábua sobre tábua”… Eu perdi a conta de quantas vezes a Mãe (JOVILDE) falou-nos sobre o ANJO DA GUARDA… Eu estava sozinho naquelas jornadas perigosas?

………O nosso comportamento não era marcado apenas pelo destemor… Nós, nem sempre, sabíamos o risco que estávamos correndo. Volta e meia, um de nós era atacado pelo gado do potreiro do saudoso ALCIDES TOAZZA. No verão de 65, um touro atacou o PEDRO ROBERTO. Este correu 5 metros, chorando. Jogou a vara de pescar para o lado do “descidão”. Subiu a cerca na “velocidade da luz”. O touro furioso golpeou o ar… Se meu amigo tivesse demorado 5 segundos, a fera, que não gostava de trajes vermelhos, teria acertado o filho do “SEU ARY do BANCO DA PROVÍNCIA”!

………Havia locais de águas calmas. Mas, como dizia meu Pai (FRIDOLINO), um conhecedor dos provérbios: “As águas calmas são profundas”. Havia poços. Não “dava pé”. Mesmo quando não havia enchentes, alguns trechos apresentavam correnteza e redemoinhos… O Rio não tinha dono. Bandidos também circulavam por suas margens. Como ocorreu em 66. O perigoso ladrão JOÃO MARIA foi lá na “Curva” contar causos… Ele era um problema de segurança pública. Quando preso, fugia. Quando fugia, era difícil prendê-lo. Escondia-se na copa das árvores grandes… A economia do Estado não permitia dotar o Município do número ideal de soldados… A vegetação ciliar do BONITO estava repleta de cobras. A maioria era verde, da família das caninanas. Como aquela que passou no meio da “piazada”, em fevereiro de 66. Cruzou ao lado do JOÃO CARLOS (“CHICO BALBINOT”), que, sentado na grama, lia revistas sobre os seriados do Oeste Americano, em preto e branco… A “verdona” foi capturada pelo DEOMAR ANTÔNIO CÓTTICA. O futuro zagueiro do HARMONIA gritou: “desnuquei no rabo!”. As caninanas eram rápidas, brabas e não venenosas. Quase todas fugiam. Melhor assim. A biodiversidade agradece… Hoje, há que se redobrar os cuidados. Todas devem ser consideradas peçonhentas. Os ofídios estão passando por mutações. Além do que, a picada delas é dolorida.

………Os obstáculos escondidos sob as águas provocavam lesões graves, por ocasião do salto (mergulho) dos nadadores. Como aconteceu com o menino MOISÉS, filho do OLTRAMARI, em 1964 (ou 1965). Machucou a coluna, ao realizar um salto difícil, no açude da usina. As notícias vinham para a Cidade confusas. Não sabíamos direito o que havia acontecido. No meio da tarde de um sábado, o GUILHERME, um humilde que ajudava os Padres, começou a bater o “sino de morto”. Ao dobrar, parecia perguntar: Por quê? Por quê? Por quê?

………A Cidade ficou chocada. A juventude passou a se cuidar mais. A nossa turma recebeu um “cartão amarelo”… Poderia ter sido um de nós!

………Os rapazes de mais idade ficavam preocupados quando apareciam, na Curva do BONITO, guris não-nadadores. Foi o caso do menino ANTENOR, filho do Comerciante ALCIDES DALBOSCO. Estava se afogando, no auge do verão de 66, numa parte funda da Curva. Não sei como foi parar ali! Tivemos que formar uma equipe. Por muito pouco, eu e ele não morremos juntos… Só obtive sucesso na última tentativa! As águas são perigosas? Fazem parte da vida? “É perigoso viver!”

………Mas quem era o guri ANTENOR? Para simplificar: se um Anjo viesse visitar o meu pequeno SARANDI, para levar dois cidadãos para viverem no Paraíso, eu iria dizer a Ele: “Senhor Anjo, por que o Sr não leva o ANTENOR… e o Pai dele? Os saltos (mergulhos), de modo geral, eram arriscados. Como, por exemplo, aqueles do menino ÁLVARO BONI, de 8 anos. Corria, alguns metros, pelo potreiro. Voava, “de bico”, na direção de uma alça de água, de 4 metros de largura. Havia barranco a montante e jusante do local da queda… Nós gostávamos de nadar ou voar?

………O mergulho mais perigoso que assisti foi feito em 1966, antes do início das aulas. Local: 20 metros acima da famosa Curva. O trecho era belo. O “atleta” passaria por cima de alguns arbustos. Altura: 7 metros. O LEOCIR (LÉO PIÚCO) gostou do lugar. Queria ir. Tentei convencê-lo a desistir. A fundura do Rio talvez não fosse suficiente. O local era uma tentação. Um pequeno ACAPULCO (MÉXICO). Ele embalou. Foi! Espetacular! Corri para a Curva do Rio para ajudá-lo… ou socorrê-lo… O LÉO não aparecia. E agora? Alguém viu o PIÚCO? Mistério… De repente, ele emerge das águas. Alegre, orgulhoso. Olhou-me. Riu. Perguntei como fez para não se machucar. Respondeu com um gesto. Levantou os braços e colocou ambos os cotovelos ao lado da cabeça. Ele bateu com os braços no chão. Protegeu a cabeça. Milagre! Não era hora!

………Ao final das tardes quentes de verão, os cardumes, com seus milhares de peixes, protagonizavam um espetáculo de rara beleza. Ficávamos emudecidos. Fascinados. Sem saber o que dizer. A Curva do Rio BONITO era um local paradisíaco. Íamos para casa com dezenas de peixes cada um. Todos pescados com anzol… Nada de rede! Quando chegava no pátio de casa, o alto-falante do Cinema já tocava as canções do filme da noite… (“EU TAMBÉM QUERO IR / QUANDO CHEGO NA LADEIRA TENHO MEDO DE CAIR / LEVA EU / MINHA SAUDADE”). O Rio BONITO é um patrimônio do Povo?

………Mas nem tudo era vida naquele refúgio da natureza. Quando percebemos que as águas estavam contaminadas, ficamos tristes, inconsoláveis. Ninguém nos informou que o Rio da nossa infância seria poluído… A nossa geração sentiu-se traída!… Quanto o homem suporta pagar pelo progresso? Por que alguns homens não respeitam os rios? Os educados respeitam! E eu, por que não salvo o rio? O salvamento de um rio depende do planejamento, do trabalho e do capricho de várias gerações… Nós esquecemos de cuidar do Rio da nossa infância maravilhosa? Estaria o BONITO chorando?… Os rios não sabem chorar! E se ele fosse um guri?

………Passadas duas décadas, eu e o Pai estávamos tomando chimarrão, num sábado à tarde, na sombra da bergamoteira. Pelo portão da garagem da Avenida, entraram um rapaz e uma jovem. Aproximaram-se, devagar, alegres… O Pai perguntou se queriam fazer compras (“fora de hora”)… Reconheci o moço. Era um amigo de infância. Sincero, ele foi direto ao ponto: “Agora estou morando em PASSO FUNDO. Trouxe a namorada para conhecer o homem que salvou a minha vida!”.

………No ano passado, assisti ao filme A ÁRVORE DA VIDA. Apresenta reflexões sobre DEUS. O Protagonista perde um filho, afogado numa piscina. O filme é mais para ser sentido do que compreendido. Fiquei com dúvidas. Decidi ver o filme de novo. Dois meses depois, o Protagonista, na vida real, foi encontrado morto nas águas do MISSISSIPI. Por quê?

………Refleti muito. Teria a tragédia alguma ligação com o filme? Por que as águas estão levando quem não deveriam levar? Os rios cobram uma espécie de dízimo?

………À noite, sonhei. Fui parar no Rio da Infância. Num ponto onde nunca estive na vida real: a 100 metros para baixo da “CURVA”. Por algum motivo meu inconsciente chegou à conclusão de que ali era o lugar… Eu estava de costas para a Cidade. De frente para o Rio e o monte… Por quê?

………Sobre o assoalho de madeira de um barco, havia uma senhorita encantadora. Vestia um traje azul claro, brilhante, que ia até o chão. Com os pés descalços. O sorriso contagiante parecia esconder-me algo. Acompanhada por 12 pessoas, seis de cada lado, em semi-círculo… Seu cabelo era castanho claro, meio longo, com estrelas em volta… Houve um silêncio. Quem seria aquela adorável moça?

………O que devo dizer? Será que ela sabe que eu vim tratar sobre o comportamento das águas? Resolvi falar. Cumprimentei um a um. Ficou engraçado. Falei do meu Pai… e do meu trabalho. Serena, irradiando paz, a Rainha das Águas, a Virgem Milagrosa ou a Deusa do Rio BONITO entregou-me um documento. Recebi-o com esperança. Coube à destra encostá-lo no coração… Senti que era algo importante. Afastei-o, lentamente, para ler o título. Lágrimas quentes não deixavam. Vi, tão somente, a cor do papiro: amarelo ouro!… Acordei.

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Meu Rio BONITO!

Não sei como agradecer teus ensinamentos! Eu nunca te esqueci! Tu fostes o Rio da nossa infância maravilhosa!

Nas tardes cálidas de verão,

daqueles Anos Dourados,

nas águas limpas de outrora,

da tua curva mais famosa,

escutando o Bem-te-vi anunciar algum perigo,

nadando contra a correnteza,

coração desbravador,

eu era o Mocinho do Cinema,

e tu, Meu Querido MISSISSIPI…

E assim, sonhando sobre as águas,

deixei escapar, distraído e alegre demais,

a “aurora da minha vida…

que os anos não trazem mais!” (*)

The End

C F VOG




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