Órgãos investigam magistrados das maiores recuperações judiciais do País
Em ao menos três dos casos, relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras apontaram operações suspeitas
A relação de juízes responsáveis por conduzir insolvências bilionárias com advogados e administradores entrou na mira de investigações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Ministério Público. O Estadão teve acesso a seis apurações sobre magistrados de Varas de Falência e Recuperação Judicial. Pelas mãos deles passam atualmente processos cujas cifras ultrapassam R$ 90 bilhões.
Em ao menos três dos casos, relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontaram operações suspeitas. Juízes foram punidos em dois desses processos. Um dos casos recebeu parecer favorável à abertura de investigação no CNJ. Magistrados e administradores afirmaram que agiram dentro da legalidade.
Nos processos de recuperação judicial e de falência, magistrados nomeiam administradores judiciais, síndicos e mediadores – agentes de confiança destacados para garantir o pagamento das dívidas e a retomada da saúde financeira das empresas.
Estes agentes ganham honorários com base no valor das causas, fixados e cobrados pelos juízes. É a partir da relação entre magistrado e agente privado que têm sido suscitadas uma série de apurações criminais e disciplinares.
A Procuradoria-Geral de Justiça do Rio abriu investigações criminais sobre a conduta de três juízes. Os inquéritos foram destinados a apurar ligações suspeitas deles com administradores judiciais e peritos.
Paulo Assed Estefan, da 4.ª Vara Empresarial, entrou na mira do MP do Rio em razão de suposta relação de sua família com o administrador judicial Marcello Macedo, nomeado por ele em processos. A investigação mostrou que a mulher de Macedo foi sócia do filho do magistrado em um restaurante.
A cantina italiana, chamada D’Amici, fica no bairro do Leme há mais de 20 anos. Advogados e juízes frequentam o local. Parte deles apelidou o restaurante de “8.ª Vara Empresarial”, em uma brincadeira com o fato de haver somente sete varas do ramo na Justiça da capital.
Transações
De acordo com o relatório do Coaf, o administrador judicial movimentou R$ 12 milhões entre 2018 e 2019, o que, segundo o MP, está acima de seus rendimentos declarados. “Os créditos nas contas de Marcello Macedo somaram R$ 6.382.483 e consistiram basicamente em depósitos em espécie e resgates de aplicações”, afirma o MP.
Entre as transações consideradas suspeitas pela Procuradoria estão cinco pagamentos de R$ 48 mil ao bar que uniu como sócios a mulher de Macedo e o filho do juiz. Segundo o MP-RJ, o escritório de Macedo movimentou R$ 34 milhões, valor acima dos rendimentos declarados da banca.
O relator do processo, desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres, arquivou o caso de ofício, sem ouvir o MP. Ele recuou da decisão em julgamento do Tribunal de Justiça do Rio que decidiu restabelecer a investigação. No recurso apresentado ao desembargador, a Procuradoria-Geral apontou como “inexplicável” a “relação empresarial ligando membros da família do magistrado e familiares do administrador judicial em atuação perante a Vara Empresarial em que o noticiado (Estefan) é titular”.
O juiz é responsável por analisar a recuperação judicial da Americanas, que acumula dívidas de R$ 40 bilhões. Ele nomeou como administrador judicial o ex-deputado Sérgio Zveiter, irmão do desembargador Luiz Zveiter, que integra o Órgão Especial, colegiado que julga pedidos em inquéritos sobre juízes no Rio. A nomeação não é objeto de investigação.
Responsável pela recuperação da Oi, de R$ 43,7 bilhões, o juiz da 7.ª Vara Empresarial do Rio, Fernando Viana, também está na mira do MP-RJ. O órgão diz que ele é dono de empresas cujos endereços registrados na Junta Comercial são idênticos aos da sede de firmas de Marco Antonio Reis Gomes – sócio de companhia de administração judicial que atua na 7.ª Vara.
Delação
Em delação premiada, o perito Charles William afirmou que Gomes lhe confidenciou que “repassava 50% dos valores de suas perícias ao irmão de Fernando Viana, que é fiscal de rendas”. A empresa M6 Participações, que tem o magistrado e seu irmão como sócios, apresentou “movimentação de recurso incompatível com o patrimônio, a atividade econômica ou a capacidade profissional ou financeira”, registrou o MP.
“As imbricadas relações envolvendo as empresas, o magistrado e seus familiares parecem revelar a existência de uma espécie de favorecimento em nomeações de administradores judiciais e peritos em processos em curso no sobredito órgão judicial, sabidamente palco de vultosas transações, cujos reflexos, invariavelmente, deságuam na remuneração de tais administradores”, diz o MP em pedido de diligências obtido pelo <b>Estadão.</b> Para o órgão, há suspeita de que um dos peritos nomeados por Viana seja ligado a uma de suas empresas.
Juíza da 5.ª Vara Empresarial do Rio, Maria da Penha Nobre Mauro é outra investigada. O MP diz que o perito mais escolhido pela juíza em seus processos é filho da contadora do escritório de seu pai, o ex-desembargador Laerson Mauro.
Todas as investigações são na esfera penal e conduzidas pela Procuradoria-Geral de Justiça perante o Órgão Especial do TJ-RJ. Na esfera administrativa, apurações sobre Maria da Penha, Viana e Estefan na Corregedoria do TJ foram anuladas pelo CNJ em julgamento sigiloso. O relator, Luiz Fernando Bandeira de Mello, disse que houve “pesca probatória” e “busca ampla e genérica sem causa provável e objeto definido”.
Síndicos
Ex-presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas, Klever Loureiro é investigado pelo CNJ em razão de irregularidades nas nomeações na falência da Laginha Agroindustrial, usina de cana-de-açúcar do falecido ex-deputado João Lyra. Em 2010, Lyra declarou à Justiça Eleitoral patrimônio de R$ 240 milhões, sendo o parlamentar mais rico do Congresso. A empresa tinha R$ 3 bilhões em dívidas quando faliu.
Loureiro é investigado por suspeita de agir para nomear um administrador judicial que admitiu à Corregedoria Nacional de Justiça não ter experiência na área, supostamente usurpando a competência do juiz da causa. Correição da Corregedoria apontou indícios de “quebra de dever de imparcialidade” do desembargador. O caso está em sigilo e não foi pautado para julgamento, disse o CNJ.
Em São Paulo, o juiz Marcos Bernicchi foi afastado em julho de 2021 pela Corregedoria do TJ-SP sob suspeita de trocar síndicos de falências sem motivo. Todos foram substituídos por um mesmo grupo. No fim de 2022, a pedido da Procuradoria-Geral de Justiça, o Órgão Especial da Corte abriu investigação criminal para apurar se o magistrado agiu para beneficiar estes agentes.
Primeiro juiz da recuperação da Itapemirim, cujas dívidas ultrapassavam R$ 2 bilhões, Paulino José Lourenço foi aposentado compulsoriamente em 2020 pelo TJ do Espírito Santo por suspeita de ligação de seu filho com o administrador escolhido pelo magistrado para conduzir recuperações em curso em sua vara.
Juízes e administradores afirmam que agiram dentro da legalidade
Os juízes e administradores judiciais citados nas investigações afirmaram ao Estadão que agiram dentro da legalidade e nada foi comprovado contra eles. Nos autos dos processos, três magistrados do Rio se queixam de perseguição da Corregedoria do Tribunal de Justiça. Dois magistrados disseram não ser alvo de investigação – a reportagem, contudo, confirmou a apuração com pessoas diretamente ligadas à condução destes processos.
O advogado Claudio Figueiredo Costa, que defende Paulo Assed Estefan, classificou o processo do qual seu cliente é alvo como “investigação ilegal, prospectiva, que não apurou nenhum fato criminoso, que devassou a vida de seus magistrados e não levantou nada”.
“O último movimento que aconteceu depois que o Conselho Nacional de Justiça decretou a nulidade de toda a investigação e a Corregedoria do tribunal reconheceu também a nulidade foi que o desembargador relator devolveu os autos ao Ministério Público perguntando se eles querem prosseguir (com a investigação criminal) diante da decretação da nulidade pelo CNJ e pela Corregedoria”, disse Costa ao Estadão. “Nada foi produzido. Não acharam nada, mas a investigação (no CNJ) também foi considerada ilícita. Ela não parte de um fato. Ela é a verdadeira hipótese de fishing expedition, ou pescaria probatória em português.”
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Férias
Procurado, o TJ do Rio se limitou a dizer que, como Estefan está de férias, enviaria os questionamentos quando o magistrado retornasse. O administrador judicial Marcello Macedo afirmou ao Estadão que não vê conflito de interesses na sociedade entre sua mulher e o filho de Estefan. “Ele foi sócio com minha mulher durante um mês. O restaurante nunca pagou dividendos a ninguém.” Macedo disse ainda não serem suspeitos os repasses ao restaurante. “Mando dinheiro toda hora para pagar conta do restaurante, para ajudar minha mulher. Lá atrás teve aporte, ajudei para pagar as contas. Mas nunca teve distribuição de lucro, nada.”
Segundo o administrador judicial, ele não movimentou R$ 12 milhões e o relatório do Coaf contabilizou três transações do mesmo dinheiro como apenas uma. “Isso foi tudo demonstrado. Todo o dinheiro é compatível com tudo que recebi, que eu ganhei, não tem um recebimento que não tenha nota fiscal emitida, que não tenha pagamento de imposto. Não tinha nada de atípico.”
De acordo com nota do TJ do Rio, o desembargador Luiz Zveiter declarou que “está impedido em todos os processos das Lojas Americanas”.
O tribunal, por meio de assessoria, também informou que o juiz Fernando Viana sustenta que procedimento que deu origem às investigações na Corregedoria foi anulado em razão de o CNJ ter concluído que ele foi conduzido com “parcialidade, desvio de finalidade, fishing expedition e subversão das garantias constitucionais”. “Quanto ao procedimento criminal instaurado, cabe destacar que foi iniciado a partir do compartilhamento dos mesmos elementos informativos, restando, portanto, de acordo com o magistrado, eivado de nulidade absoluta desde a sua origem, sendo aguardado o seu arquivamento de plano.”
Conforme o comunicado do TJ, “o juiz esclarece, ainda, no que se refere ao mérito das investigações, que os relatórios elaborados pelo Coaf foram objeto de criteriosa análise pelo Ministério Público que constatou a inexistência de variação patrimonial incompatível com a sua renda”.
Sobre o caso da juíza Maria da Penha Nobre Mauro, o TJ do Rio afirmou, inicialmente, não haver “qualquer procedimento contra a magistrada” em trâmite. O Estadão apurou, porém, que nem o Ministério Público fluminense nem a desembargadora relatora do caso promoveram o arquivamento da investigação.
Sigilo
Procurada novamente, a assessoria do TJ do Rio disse que a informação sobre o andamento dos inquéritos foi checada somente com “os magistrados citados”, que não possuem acesso nem conhecimento a respeito de processos que tramitam em sigilo. A reportagem questionou o TJ se poderia apontar uma eventual decisão para trancar o inquérito. A Corte não se manifestou. Marco Antonio Reis Gomes e Charles William não foram localizados pela reportagem.
O desembargador Klever Loureiro afirmou que não é mais relator da ação da falência da Laginha, do grupo João Lyra. Ele também disse que a “pretensão formulada contra este desembargador perante o CNJ já foi devidamente analisada e arquivada por não ter constatado nenhuma infração de natureza administrativa e disciplinar”, e que advogados visam “tumultuar a marcha processual” da falência.
Uma reclamação de advogados foi, de fato, arquivada pelo CNJ. A reportagem, no entanto, se refere a uma correição em outro processo que tramita no colegiado. O conselho afirmou ao Estadão que, por estar em sigilo, não tem detalhes do andamento. “Só teremos alguma informação quando o processo for pautado.” Questionado novamente sobre este procedimento, Loureiro não se manifestou.
Disponibilidade
O juiz Marcos Bernicchi não foi localizado. Procurado, o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou que o Bernicchi “está em disponibilidade desde 8/7/2021”. A pena de disponibilidade se refere ao afastamento do magistrado por dois anos.
O advogado Cássio Rebouças, que defende o juiz Paulino Lourenço, disse que o magistrado é inocente e foi julgado “com base em presunções”. “O magistrado, desde o início das investigações, colaborou como pôde e abriu mão de seus sigilos constitucionais e, mesmo assim, até o momento, não se respondeu quem teria pago o que ao juiz”, declarou o advogado.
Correio do Povo