Desde 2019, Rio Grande do Sul já soma 2.864 ocorrências de atos libidinosos praticado sem autorização
Há três anos, abusos sofridos por mulheres em meios de transportes passaram a ser considerados crimes e não mais contravenções penais. A Lei da Importunação Sexual (Lei 13.718) não só tipifica um ato libidinoso praticado sem autorização – como toques inapropriados, cantadas e beijos sem consenso – como fortalece meios para denúncias e criação de ações públicas no combate à violência contra mulheres.
“A Lei da Importunação Sexual veio para suprir uma lacuna que tinha porque ou configurava estupro, uma coisa bem mais grave, ou era uma contravenção penal, que é importunar alguém em lugar público”, explica Samieh Saleh, delegada da Polícia Civil do RS. Com a lei, os autores do crime podem pegar de um a cinco anos de prisão. Antes, a penalidade era só de multa ou, às vezes, um termo circunstanciado.
No período de vigor da lei, o Rio Grande do Sul contabilizou 2.864 ocorrências de importunação sexual. Os registros estão distribuídos por 287 municípios, mais da metade do total de cidades gaúchas, de acordo com a Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP).
Em 2019, foram 1.068 casos. No ano seguinte, mesmo com a pandemia e a circulação reduzida em espaços públicos, manteve o patamar: 1.035 registros de mulheres que buscaram delegacias para denúncias.
Agora, em 2021, já são 761 ocorrências de importunação sexual nos oito primeiros meses do ano. Neste período, ao menos 180 cidades voltaram a registrar casos enquadrados na lei. Os maiores números são de Porto Alegre, que já soma 117 denúncias neste ano. Nos anos anteriores, as delegacias da Capital reportaram 156 casos em 2020, e 253 casos em 2019.
Questionada pelo Correio do Povo, a SSP não chegou a informar se houve presos e a quantidade de detidos por atos relacionados à lei no RS até o fechamento desta matéria.
Além de Porto Alegre, outras 13 grandes cidades gaúchas já registram ao menos dez ocorrências de ato libidinoso sem consentimento neste ano. São elas: Alvorada, Bento Gonçalves, Cachoeirinha, Canoas, Caxias do Sul, Gravataí, Passo Fundo, Pelotas, Rio Grande, Santa Maria, São Leopoldo, Uruguaiana e Viamão.
Em três dessas cidades, o saldo de denúncias entre janeiro e agosto deste ano já é maior do que o acumulado de 2020. Em Cachoeirinha, na Região Metropolitana, os casos pularam de seis em 2020 para 11 registros até então contabilizados em 2021. No Sul do Estado, em Rio Grande, a diferença entre os dois anos já é de quatro denúncias – de 10 para 14. Já em Uruguaiana, as ocorrências passaram de 11 em 2020 para 15 neste ano.
A delegada, porém, lembra que os números não refletem totalmente a realidade: “Crimes envolvendo violência doméstica e sexual as subnotificações são muito altas, em torno de 80%. Ou seja, o que chega para nós é 20%. Imagina quantidade de pessoas que não procuram a polícia?”, aponta ela, que ressalta que o aumento de registros não reflete unicamente crescimento de ocorrências, mas sim o fortalecimento de campanhas que encorajam mulheres.
A lei evoluiu a “duras penas”, diz especialista
Quinze anos. Essa é a idade de uma das principais leis que cria mecanismos para coibir a violência doméstica: a Lei Maria da Penha, implementada em 2006. A legislação, que leva nome de uma mulher violentada pelo ex-companheiro, e que felizmente sobreviveu, contribui hoje na criação de políticas públicas desenvolvidas pelos poderes Executivo e Judiciário.
“A gente evoluiu a duras penas na construção de direitos e proteção. É um direito que é recente, a gente pode pensar que a Lei Maria a Penha é de 2006, e ela só surge porque o Brasil tem uma condenação internacional que obrigada o estado brasileiro a criar a lei”, lembra Paula Franciele da Silva, professora e pesquisadora na área de gênero e criminologia.
De acordo com ela, a existência de leis que reconheçam a violência têm um duplo sentido: o efeito simbólico e de apontar para essa realidade, reconhecer a violência e pensar em formas de monitorar. “Posso ir na delegacia e essa denúncia vai gerar um número, daí posso acompanhar. Quando falamos em violência doméstica, não posso te dizer se em 1940 ela era maior ou menor porque não tinha esse monitoramento”, compara a advogada.
Todo o avanço que o Brasil possui hoje em relação aos direitos da mulher – seja na tipificação de violências ou na criação de delegacias especializadas no atendimento deste grupo – é ainda um “processo em construção”, na visão dela. Paula é enfática ao defender que a sociedade de comemorar os avanços, mas também pensar em como essas políticas podem ser aperfeiçoadas.
“A gente ainda tem que discutir quem pode ser vítima de uma violência de gênero”, diz, ao citar casos de violência contra transsexuais que acabam sendo enquadrados unicamente como crime contra homossexuais, sem levar me consideração o corpo feminino. “O ódio é destinado a estes corpos.”
Hoje, 15 anos depois da criação da Lei Maria da Penha e três da Importunação Sexual, alguns desafios pouco mudaram na hora de registrar a denúncia. Dentre os principais dele, aponta Paula, estão o acolhimento à vítima e a divulgação dos direitos.
“Primeiro eu tenho que contar essa violência, e o contar revive a violência. Não sei se onde fizer esse registro, ou dentro da própria casa, vou ter acolhimento”, afirma a pesquisadora. Em relação ao conhecimento da lei, ela propõe maior divulgação em espaços de grande circulação, como bancos e farmácias.
O que diz a lei
Na lei, a importunação sexual é especificada como “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. Este crime é enquadrado quando a vítima possui mais de 14 anos. Para a faixa etária inferior configura estupro de vulnerável, mesmo que não haja a violência física.
Em 2018, a aprovação da lei ganhou força após grande repercussão de denúncias no período do carnaval. Dentre estes episódios, estava o de homens que ejaculavam em mulheres em ônibus.
Para a delegada Samieh Saleh, a implementação da tipificação com sua penalidade mais branda serve para encorajar as vítimas no registro de denúncias. “As vítimas às vezes não querem denunciar por vergonha, acham que não vai dar em nada”, conta. “Criando a lei dá uma atenção especial à vítima e influencia ela a procurar uma delegacia para fazer a denúncia.”
Importunação Sexual no meio digital
A lei de Importunação Sexual (Lei 13.718) também pune a divulgação de cena de estupro, de cena de sexo ou de pornografia. Enquadra-se a distribuição de vídeo e fotos de cena de sexo ou nudez ou pornografia e, ainda, cenas de estupro, por qualquer meio.
Sobre isso, o texto diz: “Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática –, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia”.
Para registro de importunação, relato da vítima já basta
As denúncias de importunação sexual podem ser feitas em qualquer delegacia municipal ou pelo telefone discando 190. Como forma de proteção, a ocorrência pode ser feita em sigilo, sem identificação. A delegada Samieh Saleh lembra que notificações feitas momentos após o abuso, pelo 190, podem resultar em prisão em flagrante.
Para o registro da importunação basta apenas o relato da vítima, sem a obrigatoriedade de relatos de testemunhas ou mídias para comprovação. “A palavra da vítima tem total relevância neste caso”, ressalta a delegada.
Correio do Povo