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terça-feira 3 dezembro 2024
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“Fotografia é uma língua estrangeira que todo mundo acha que sabe falar”

No Brasil a convite da SP Arte Foto, Sarah Meister falou sobre arte fotográfica e ‘selfies’

fotografia conquistou seu lugar definitivo no mapa das artes, e o Brasil, seu espaço no mapa mundial da fotografia. É o que defende a 9a edição da SP Arte Foto (17 a 23 de agosto), a maior feira de foto da América Latina, voltada à difusão da produção brasileira e internacional junto ao público. Com uma seleção de 31 expositores de cinco estados do país, incluindo galerias, editoras e livrarias, o evento trouxe a São Paulo uma das maiores especialistas no assunto: a curadora Sarah Meister, da equipe de fotografia do MoMA de Nova York – que tantos parâmetros dita no mundo sobre arte moderna.
Há 18 anos integrando o time curatorial do MoMA, Sarah vem se aproximando do Brasil e do resto da América Latina com a missão de captar os maiores talentos regionais da fotografia. Já esteve em São Paulo e no Rio de Janeiro algumas vezes para visitar as Bienais de Arte e, a partir de viagens cada vez mais frequentes, está “construindo relações e um mapa mental próprio das artes locais”. Assim, entre uma viagem e outra, cresce a lista de artistas brasileiros do museu, que já conta um time de primeira: Thomaz Farkas, Gaspar Gasparian, Rosângela Rennó, Vik Muniz, Claudia Andujar, Mário Cravo Neto, Sebastião Salgado e Alair Gomes, entre outros.
A curadora, mesmo rodeada de grandes nomes da fotografia artística, não torce o nariz para oboom fotográfico que nos rodeia nos dias atuais e inclusive se declara entusiasta das selfies – “desde que eram feitas com câmera analógica”. Defensora das mulheres, “que na fotografia se expressam como em nenhum outro meio artístico”, sabe bem que seu trabalho é diferenciar o que merece ir para a parede e o que não: “Faz total diferença estar diante de uma fotografia emoldurada do que só vê-la através de uma tela. Por isso, é essencial que os museus existam e as colecionem, para que as pessoas sejam transformadas por elas – ainda que isso soe ingênuo”.
Pergunta. Como é ser curadora de fotografia em um dos museus mais cobiçados do mundo por tanto tempo?
Resposta. Nem em um milhão de anos achei que eu ainda estaria no MoMA, 18 anos depois de entrar lá. Mas meu trabalho continua mudando e me desafiando. Qualquer lugar em que você tem a oportunidade de aprender tanto e expandir o que acha que sabe sobre a história da fotografia ou qualquer outra coisa é um emprego de sorte. À medida que você se desenvolve como curador, vai ganhando certa independência, o que é maravilhoso. Tive a chance de organizar alguns projetos sozinha e outros em parceria com meus colegas, e todos foram enriquecedores. Uma característica forte da equipe do MoMA é não fazer as coisas pela metade. Você dá tudo de si, faz a lição de casa e determina um patamar a ser alcançado com cada ideia, que seja compreensível e ao mesmo tempo inspirador para o público.
P. A fotografia mudou nesses anos incrivelmente. Há uma marca em especial que o museu deseja imprimir nessa área?
R. Acho que não existe uma só coisa que o MoMA queria fazer. Mas eu diria que, na grande exposição de fotografia que produzimos para retratar novas conquistas na arte fotográfica, incluindo nomes novos e antigos, domésticos ou internacionais, um dos objetivos do curador-chefe do museu, Quentin Bajac, tem sido dar mais espaço aos artistas. Tanto que essa exposição, que era anual, agora acontece a cada dois anos. Com isso, queremos estar à altura dessas em mudanças na fotografia. Não é possível captar em pouco tempo as novidades, essas novas fronteiras. Há tanta prática contemporânea que precisa de calma para ser compreendida… Por isso, Bajac reconhece que temos que dar a artistas que trabalham com fotografia, reconhecendo-se como fotógrafos ou não, esse espaço.
P. Você esteve na SP Arte Foto deste ano para falar sobre Brasil e América Latina no panorama da fotografia mundial. Que retrato você faz da região nesse contexto?
R. Uma das coisas que conversamos na feira é o que o MoMA tem feito com artistas brasileiros e latino-americanos – ainda que, por mais orgulhosa que esteja do que já fizemos, eu tenha total ciência de que há muito por fazer. Como museu, algo que nos diferencia é querer realmente ampliar o diálogo que já existe e apoiar continuamente essa produção, coisa que fazemos com um investimento que nossos apoiadores reconhecem como essencial para ser uma instituição global. Dessa maneira, não caímos no erro de olhar para uma obra de arte latino-americana e dizer algo como “ah, isso parece algo feito em Nova York há 20 anos”. Queremos entender as motivações e os fatores particulares que fazem com que cada trabalho seja do jeito que é. Julgá-lo em seus próprios termos.
P. Em termos de estilo, é possível falar em fotografia latino-americana?
R. Quanto mais estudo a região, mais concluo que esse termo não faz nenhum sentido. Inclusive no presente, em que os voos entre as capitais da América Latina são abundantes e mais baratos do que eram no passado e a informação circula. Estou chocada como a modernidade se constrói discretamente, em cada país, à sua maneira, respondendo às suas próprias circunstâncias geográficas, políticas, históricas e artísticas – mesmo em tempos de forte globalização. Temos nos esforçado para viajar para descobrir o que faz da arte de cada lugar tão específica. Como no caso do Chile, por exemplo, em que as diferentes manifestações artísticas são tão ligadas à literatura, como poucos lugares no mundo. Para entender isso, conversamos não só com os artistas, mas com escritores, curadores etc. Da mesma maneira, não gosto de falar de fotografia nova-iorquina. Prefiro falar em fotografia feita em Nova York, porque é uma maneira de celebrar a diversidade do assunto.
P. Mas é possível falar em uma qualidade patente, a seu ver, já que o número de fotógrafos latino-americanos que fazem parte dos acervos do MoMA está crescendo?
R. Sem dúvida. E espero que continue crescendo. Temos uma iniciativa de pesquisa no museu chamada CMIP, que tornou possível para nós criar um fluxo talentos internacionais em todas as áreas, não somente fotografia. Temos uma tradição maior em artes plásticas latino-americanas, mas queremos que tudo converse e represente a região de uma maneira mais ampla, além de construir uma rede. O MoMA é uma das raras instituições que apoia a ideia pura de pesquisa, não pensando somente em pesquisar material para a próxima exposição. Graças a isso, hoje posso dizer que tenho amigos de fato aqui em São Paulo, com quem converso sempre e troco ideias.
P. O que você opina sobre o fato de que hoje todo mundo é fotógrafo?
R. [Risos] Faço minha a frase de um fotógrafo norte-americano chamado Philip-Lorca diCorcia, que disse: “Fotografia é uma língua estrangeira que todo mundo acha que sabe falar”.
P. Isso não soa muito tolerante.
R. Acho que você tem razão [risos]. Em certo nível, todo mundo é fotógrafo e, ainda assim, se você realmente acredita no potencial do meio, não há uma relação de um para um entre o que uma foto retrata e o que ela significa. Esse entendimento da diferença entre o tema de uma foto e a intenção artística por trás dela – que pode ter a ver com o tema ou não – muda um pouco as coisas. Uma foto do meu cachorro no meu celular opera em um nível diferente do que fazem fotógrafos com intenções artísticas sérias, expressando-se através da fotografia. Dito isso, vivemos um ótimo momento na fotografia, porque todos tiram fotos, e o tema está em voga. O bom é que as pessoas também andam interessadas na materialidade da imagem, em sua apresentação, em suas características físicas. Isso, a meu ver, está relacionado com a enxurrada de imagens que vem às nossas telas nos dias de hoje e que são materiais. Outra coisa que noto é um interesse dos jovens na história da fotografia, em sua espinha teórica. Tudo isso me dá uma grande esperança para o futuro, porque acredito na relevância da fotografia também como objeto estético. Faz total diferença estar diante de uma fotografia emoldurada do que só vê-la através de uma tela. Por isso, é essencial que os museus existam e as colecionem, para que as pessoas sejam transformadas por elas – ainda que isso soe ingênuo.
P. E as selfies? Incomodam você?

Não acho que as selfiessejam um mal em si. Meu marido brinca comigo dizendo que tiroselfies desde que ele me conhece”

R. Há pessoas que fazem ótimasselfies! Não vou negar, ainda que não seja uma delas. Fico feliz com qualquer coisa que ajude as pessoas a se interessar pelo mundo ao seu redor. O que me desanima é quando alguém nem olha para o lugar onde está e, em lugar disso, caminha com um celular voltado para si para fazer uma foto. Vivi isso no México no ano passado: duas meninas caminhando pelas ruínas astecas fazendo foto de si mesmas e nem aí para as ruínas! É uma pena. É substituir o real interesse nas coisas. Mas não tem que ser assim. Não acho que as selfies sejam um mal em si. Meu marido brinca comigo dizendo que tiro selfies desde que ele me conhece, desde a velha câmera analógica. Na minha vida pessoal, a fotografia é uma maneira de recordar.
P. Voltando à fotografia profissional, você adquiriu recentemente fotos do Alair Gomes, um dos destaques desta SP Arte Foto, para o MoMA. O que atrai você no trabalho desse fotógrafo fluminense cujo trabalho, nos anos 70 e 80, continha grande carga erótica?
R. A primeira vez que eu lembro de ter sido tocada por um entusiasmo generalizado com as fotos dele foi na Bienal de São Paulo, em 2012. Lembro de ter conversado com um colega meu sobre ele, e a ambos seu trabalho pareceu incrível. As impressões antigas dele são bem difíceis de encontrar. Localizamos um colecionador de suas fotos no Rio de Janeiro, e fui lá conversar com ele. Escolhemos uma, que era a que mais queríamos adquirir para o museu, e ele gentilmente nos ofereceu uma segunda. O Alair é um exemplo entre os brasileiros no MoMA, e esperamos ter muito mais.

Sonatina, década de 70. Gelatina e prata sobre papel. / ALAIR GOMES (GALERIA BERGAMIN & GOMIDE)
P. O fotojornalismo brasileiro tem fama de ser inovador. Você teve a oportunidade de conhecer trabalhos nessa área?
R. Não. Conheço pessoas como Germán Lorca, que era fotojornalista e também tinha um trabalho autoral. Estou começando a entender como as duas coisas se relacionam, e sei que essas separações entre o que é arte e o que não nem sempre se justificam. Estou mais familiarizada com o que se convencionou chamar de fotografia artística – pensada desde o começo com a intenção de ser arte –, mas as intenções do MoMA vão muito além disso. Vejo as fotos do Marc Ferrez e penso para mim mesma: “Esse é o Eugène Atget do Brasil”. E ele fazia fotos comerciais, muito boas por sinal, porém com essa ambição profissional. Acho que você pode ser um fotojornalista e fazer boas fotos que encaixam em um museu.
P. Por causa da presença da câmera, a fotografia é uma arte que pode trazer surpresas, não?
R. Qualquer um pode chegar a fazer ao menos uma boa foto. No MoMA, tendemos a não colecionar o trabalho de artistas no início de carreira, tratando de observar primeiro aonde eles vão, se o que fazem é parte de uma visão ou ambição mais ampla ou o que torna a contribuição deles única. É um desafio. Acabo de ver o livro de fotos de um pintor, cujos cliques no Instagram são maravilhosos. Vejo como uma exploração pessoal, privada. É preciso estar num museu? Não sei. Mas isso não significa, nem de longe, que não tenha valor.
P. O que você opina sobre a presença de mulheres na fotografia, em relação a outras formas de arte, como a literatura – em que há mais autores publicados do que autoras?

Você não precisa de homens para compor um viés histórico da fotografia. Não há outra arte capaz contar sua própria história exclusivamente pelo trabalho de artistas mulheres. Só a fotografia”

R. Na minha opinião, a fotografia é o meio artístico feminino por excelência. Fizemos uma mostra em 2010 no MoMA chamada Pictures by Women – A history of modern photography [Fotografias feitas por mulheres – Uma história da fotografia moderna]. Nela, percebi que não há outra arte capaz contar sua própria história exclusivamente pelo trabalho de artistas mulheres. Você não conta uma história da literatura só com obras de autoras, infelizmente. Isso não significa que não haja ótimos fotógrafos homens. Mas você não precisa deles para compor um viés histórico. Acho que isso se deve a que as mulheres puderam ser fotógrafas, porque isso não era visto como algo que ia contra a função feminina na sociedade. Até certo nível, você quer ser cego em relação ao gênero de quem faz arte, porque você quer se ater à obra. Por outro lado, fico animada quando vejo uma bela fotografia e descubro que o autor é uma mulher que ainda por cima tem um trabalho incrível. Como curadora, toda chance que eu tenho de valorizar o trabalho de uma fotógrafa, eu abraço.
P. Você é fotógrafa, além de curadora?
R. Eu era fotógrafa, até aprender o suficiente sobre fotografia para deixar de ser. Entendi a diferença entre o que fazia e o que artistas de verdade fazem. Trabalhar num lugar como o MoMA é uma experiência de humildade. Você vive rodeado de obras de arte que inspiram as pessoas. Faço meu trabalho, que é prestar atenção nisso.



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