Jorge Maranhão
10 de agosto de 2015
Pelo menos quatro campanhas pela ética na política e contra a corrupção de quatro grandes segmentos de cidadãos atuantes foram lançadas nos últimos anos, sem, no entanto, se articularem numa legítima ambição de abranger toda a sociedade. Se não, caro leitor, responda com honestidade se já tinha notícia de alguma delas ou mesmo as viu frequentar o espaço da grande mídia. De setores de entidades civis, de profissionais liberais, sindicatos, igrejas e estudantes, vemos a continuidade da campanha do MCCE – Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que nos legou a Lei da Ficha Limpa, e que agora se dedica à causa da reforma política. Garanto que o leitor tem sido bombardeado pelas sugestões de reforma de nossos políticos, mas não do que propõem entidades civis da expressão de uma CNBB, OAB, UNE entre outras mais de cinquenta preocupadas com o tema. Ou de campanhas de entidades empresariais e algumas empresas singulares, como a do MBE – Movimento Brasil Eficiente (que propusemos que incorporasse também o fim ético, tornando-se MBE², uma vez que não existe eficiência sem ética), lutando pela simplificação e transparência tributárias, uma das maiores fontes da corrupção social. De setores dos operadores da Justiça, como os promotores públicos, temos acompanhado a campanha “O que você tem a ver com a corrupção” extrapolar até mesmo nosso território e ser recomendada como iniciativa da própria ONU. E ultimamente presenciamos a Campanha pela Moralidade Nacional que, de iniciativa originária no Clube Militar, tende a ganhar a adesão de várias outras entidades militares por todo o território nacional. Se muito tem se indignado cada um destes segmentos da elite de nossa cidadania, pouco tem sido articuladas estas iniciativas para a mobilização de toda a sociedade. Pois, se todas dependem da mídia de massa, pouco tem sido abordada a pauta que está por trás de tudo: a crescente onda de relativismo moral que enfrentamos. Talvez pelo fato do problema começar pelos operadores da própria mídia e ser de tal monta que acaba passando despercebido em meio a um noticiário alucinantemente dedicado a obsessiva cobertura dos delitos sem-fim de nossa classe política. Para além de a mídia de entretenimento estar dedicada a revolucionar os costumes morais tradicionais de um país “careta”, como se referiu recentemente sobre a sociedade brasileira um famoso novelista campeão global de audiência.
Há anos firmamos a convicção de que tais iniciativas, por mais legítimas que sejam, não terão a força necessária de mudar nossos miseráveis costumes políticos se não se convergirem para o espaço público da mídia de modo unificado e simples, num formato que privilegie mais os enunciados de propostas do que análises profundas e dissertações eruditas. Pois é, sobretudo, na mídia que a corrupção dos valores morais do imaginário social brasileiro confunde conceitos e traveste de normalidade situações absolutamente anômalas. Se não entendemos a diferença entre o valor intrínseco da vida e as chamadas “condições de vida” de viés esquerdista, entre igualdade de oportunidades e igualdade social – que traz oculta a negação das leis pela celebração de privilégios corporativos, entre Estado e governos, entre legalidade e moralidade pública, entre Justiça e justiça “social”, e principalmente entre responsabilidade política de todos, e para além de responsabilidade social de empresas, responsabilidade civil profissional, ou responsabilidade fiscal de governantes, não temos condições mínimas de autonomia, de pensamento, de liberdade, enfim. Liberdade, aliás, que de alteridade como manda a tradição filosófica, entre nós é trocada pela liberdade de identidade, alheia e a despeito da lei.
Uma elite de cidadãos conscientes e atuantes no Brasil tem a urgente necessidade de escolher entre o paradigma hobbesiano do homem como lobo do homem ou a utopia rousseauniana do bom selvagem! Ou seja, entre a ideia da tradição classicista do pecado original – que confirma o livre arbítrio da liberdade da escolha individual – e o romantismo do mito adâmico do homem puro e sem pecado, o qual só se torna “mau” e “pecador” pela ação deletéria da sociedade. Se no primeiro paradigma assumimos as consequências por nossas escolhas individuais como cidadãos livres, tornando possível a transição de uma cultura de transgressão para uma cultura de plena cidadania, no segundo modelo ideológico diluímos a responsabilização penal para toda a sociedade tornando-nos todos cúmplices da omissão política e transferindo cinicamente a culpa para as calendas de nossa formação histórica ibérica ou para a fatalidade da generalização do povo sem instrução elementar.
Urge a cada cidadão mais consciente e atuante reconhecer a sua responsabilidade política diante da verdadeira reforma cultural que o país deve enfrentar e que pode ser expressa em três pontos principais: 1) a construção de um novo imaginário social na mídia, sobretudo no que tange ao resgate de uma cultura política fundada em valores morais, superando “a voz das ruas” meramente reivindicatórias pela voz dos cidadãos responsáveis por propostas de políticas públicas consistentes; 2) a defesa de instituições de Estado fortes e independentes, em detrimento direto da burla do Estado-empresário, que garantam os valores constitucionais da vida, da justiça, da propriedade e da liberdade; e 3) a maior qualificação do debate público pela superação do dilema da alegada crise de gestão do setor público e a crise de valores do setor privado, raiz do mau tempo econômico que vivenciamos.
Hoje, sem sombra de dúvida, esta é a agenda indeclinável da cidadania. Se a Educação tem patinado ao longo das últimas décadas, e apresentado um viés doutrinário cada vez mais coletivista e relativista; se a Justiça tem se mostrado lenta, pouco eficaz, corporativista e o menos transparente dos poderes; e se a mídia não reconhece a sua própria responsabilidade cívica – como manda, aliás, o artigo 221 da C.F. sobre as premissas de sua concessão pública – diante da construção e difusão de valores morais, caberá a esses cidadãos atuantes, uma verdadeira elite da sociedade, os verdadeiramente melhores de nós, e não necessariamente os mais afortunados, tomar para si esta inadiável tarefa.
Desde o marco fundador da cidadania, a promulgação da Carta Magna na Inglaterra de 1215, até os dias atuais, o que entendemos como cidadania vem evoluindo. Num primeiro momento, a luta era por direitos sociais, expressa em filantropia e assistencialismos, seja pelas razões e ação das Igrejas, seja pelas razões e ação do Estado. Num segundo momento, a cidadania passa a ser vista como a defesa da legalidade e das conquistas civis, e a própria urbanidade, ideário iluminista que nos persegue até hoje. Mas ao longo do tempo, conforme essas conquistas se consolidaram, a definição de cidadania avançou para se repensar a relação entre cidadãos pagadores de impostos e eleitores, e aqueles eleitos para postos no poder público. Cidadania não é mais apenas a defesa de direitos, mas principalmente a compreensão de que a cada direito conquistado corresponde o dever de fiscalizar a execução dos orçamentos públicos, de cobrar de políticos e servidores a transparência e a moralidade pública inerente às funções que desempenham, e de que se trabalhe para a independência e valorização das instituições de Estado, a fim de se garantir efetivamente o fortalecimento da democracia, os alegados direitos sociais e as oportunidades iguais para todos. Por que as duas maiores revoluções culturais da humanidade ocorridas nas últimas décadas assim exigem: diante da conscientização ambiental sobre os limites de renovação dos recursos naturais do planeta e da abertura de dados pela tecnologia da informação sobre o interesse realmente público da ação dos governantes, o sentido da cidadania tem sido mais da ordem do dever político do que da mera reivindicação populista de direitos sociais ilimitados.
Depois de trinta anos de militância na mídia, estamos convencidos de que não superaremos nossa cultura de transgressão e omissão políticas, o corporativismo de nossas instituições jurídicas, as persistentes deficiências da qualidade de nosso ensino público, a degradação global dos valores morais da família e das igrejas e o imediatismo patrimonialista de nossa ação empresarial, sem um verdadeiro choque de mídia, a exemplo do que já ocorreu em democracias mais maduras. É urgente que nos reunamos numa só elite de cidadãos políticos as lideranças dos mais variados segmentos preocupados com a crise ética que nos degrada a todos. E isto só com uma grande campanha de mobilização nacional que capture e divulgue o pensamento de uma elite de cidadãos atuantes, verdadeiros agentes de cidadania que compreendem que controle social se faz com propostas objetivas e eficientes de políticas públicas e com participação permanente no debate público. Uma campanha mais cívica do que meramente publicitária, que nos apresente a nós mesmos. Por que esses agentes existem, e são muitos. Assim como suas propostas boas e inovadoras. Mas o que nos deprime, para além da recessão econômica, é a nossa ressaca moral. Na verdade, um fenômeno de mídia resultante de uma cobertura obsessiva e irresponsável de nossa miséria política, a consagração de uma “opinião publicada” de uma decantada cultura de transgressão a que somos fatalmente condenados por uma mera idiossincrasia doutrinária, uma fixação mórbida pelo fracasso, um compromisso com a derrota por antecipação, um arraigado complexo de vira-lata. Uma mídia vassala no acompanhar a chapa branca do poder constituído e não a ação inovadora da cidadania constituinte.
Como dizemos aqui no nosso Instituto A Voz do Cidadão: “Não basta aos cidadãos terem responsabilidade civil. Não basta às empresas terem responsabilidade social. Não basta aos governos terem responsabilidade fiscal. Para o país voltar a crescer, é preciso o compromisso de todos para com a responsabilidade política, expressão de uma verdadeira cultura de cidadania”.
Jorge Maranhão é mestre em filosofia pela UFRJ, dirige o Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão