O movimento O Sul é Meu País surgiu em 1992 na cidade de Laguna, Santa Catarina, com a proposta de separar Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul do resto do Brasil. Segundo Celso Deucher, catarinense e atual presidente do movimento, contabilizando os simpatizantes nos três estados, atualmente há 6 milhões de pessoas em torno da ideia. A página oficial no Facebook registra pouco mais de 16 mil curtidas. São mais um, talvez o maior, entre os 53 movimentos separatistas que já apareceram na região. No site oficial, a organização se apresenta como “a consequência, de cujas causas não podemos ser acusados”.
No encontro realizado no dia 20 de setembro em um hotel em Passo Fundo, os separatistas do grupo falaram das óbvias razões que possuem para se separar do Brasil e volta e meia recaíram sobre a crítica à corrupção e à política nacional. Disseram aceitar pessoas de todos os credos, raças e tendências políticas, desde que o indivíduo esteja “imbuído do desejo separatista”. Na fala dos líderes e palestrantes, “tudo que está errado” é traduzido em repulsa ao Bolsa Família, às cotas raciais, ao processo do Mensalão.
“A gente vê o governo abrindo mais vagas no Bolsa Família, mas não vê postos de trabalho”, reclama Deucher. “Nós queremos nos livrar, porque esse Estado, Brasília, não nos representa. Ele não diz nada para nós, o que ele diz é só coisa ruim”, conclui. A rejeição a Brasília é o mote dos panfletos que os membros imprimem com dinheiro do próprio bolso e distribuem em suas cidades. O mais recente lembrava que, em 2013, os três estados do sul arrecadaram 152 bilhões de reais, mas tiveram “retorno” de apenas 29,3 bilhões. Em letras amarelas, o movimento faz a conta: 80% “do total arrecadado não retornou aos estados”.
Eles acreditam que a distribuição das contas desencadeou um processo de “favelamento do sul”. Fundador do movimento separatista paranaense República das Araucárias, Helio Ribas Micheleto chegou a ser demitido do emprego em 1993 por sua ligação com a causa. Nem por isso se afastou do movimento ou deixou de usar na lapela do paletó o broche que carrega o símbolo dos três estados. “Hoje, os dez maiores municípios do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, municípios com mais de cem mil habitantes, estão cheios de favelas. (…) De onde é que veio isso aí? Gerado pela pobreza, pela falta de investimento federal, deixando os governadores sem dinheiro e, consequentemente, os municípios”, afirma.
Os separatistas também se creem injustiçados na representação parlamentar. Deucher reconhece que algumas das “oligarquias que tomaram conta do Estado nacional” são do Sul. Ainda assim, acredita que o cálculo do quociente eleitoral – que divide o número de eleitores pelo número de cadeiras disponíveis – faz com que o Sul nunca seja ouvido. “Como eu preciso de 17 catarinenses para valer um voto de um cara, sei lá, do Acre? De onde que saiu essa conta tão louca que um tem que ter poder econômico e outro tem que ter poder político? Num tempo em que o voto universal é um voto, como que isso continua acontecendo no Brasil, né? Essa questão aí, ela é seríssima. Por quê? Porque ela tira o valor como cidadãos que nós temos, como brasileiros. Tira a nossa força de lutar por aquilo que nós queremos”, frisa.
Na conferência, as “oportunidades” de expansão do movimento e formas de se espalhar a ideia são discutidas durante uma Oficina de Planejamento Estratégico. Um dos participantes sugere que o movimento utilize a mesma estrutura do marketing multinível – o polêmico esquema de pirâmide – esclarecendo que aqui não entraria dinheiro. Ele explica que uma pessoa seria responsável por integrar outras três à organização; essas três, outras três; e assim por diante. Outro integrante reconheceu na ideia uma estratégia também utilizada por igrejas evangélicas para arrebanhar mais fiéis: “Ah, sim, na igreja chamamos isso de igreja em células. Pode funcionar!”, exclama.
Mas a polêmica maior é o ter ou não ter participação ativa na política brasileira. Um dos participantes, Hermes Aloisio, vice-presidente do movimento em Passo Fundo, foi também candidato a vice-governador do Rio Grande do Sul pelo PRTB, o partido de Levy Fidelix. No programa de governo de sua coligação, o plebiscito pela “autodeterminação política e econômica” é uma promessa. Deucher tenta se afastar disso. Fala que alguns políticos já demonstraram interesse em apoiá-los: “Só que nós não queremos esses apoios, entendes? Porque os caras são sujos, pô”.
Na mesma época em que os catarinenses tentavam reunir os três estados sulistas em torno da causa com a fundação de O Sul é Meu País, em Porto Alegre, a República Federativa dos Pampas virava notícia nacional. Em 1993, Irton Marx, presidente da organização que defendia um território independente só para os gaúchos, protagonizou uma reportagem no Jornal Nacional da Rede Globo defendendo um país que falasse alemão. Acabou sendo acusado de nazista e processado pelo Estado. Uma imagem que, mesmo com a absolvição de Marx, ainda assombra os separatistas de hoje.
“O cara (Marx) criou um país inteiro. Ele sentou numa mesa e – com o perdão da palavra – se masturbou com a ideia e botou tudo ali. (…) Ele era radical, personalista, era ele que era o gostosão do negócio. Era ele que ditava as ordens, e isso começou a desagradar todo mundo”, critica Deucher. Depois da secessão sulista, o movimento representado por ele decidiu se legalizar, registrando inclusive um CNPJ, se formalizando como pessoa jurídica.
O presidente alega que, na década de 1990, o grupo foi espionado pelo governo. Pessoas que se apresentavam como interessados na causa participavam das reuniões, gravavam conversas e, um tempo depois, aparecia um processo contra os separatistas. Outras vezes, recém-chegados pediam a palavra e revelavam um discurso fascista. Deucher conta que isso ainda se repete vez ou outra. Há oito meses, um militar da reserva gravou um dos encontros e registrou representação contra ele no Ministério Público com base na Lei de Segurança Nacional.
Ainda que Deucher critique o personalismo de Irton Marx, é difícil separar sua figura de O Sul é Meu País. Ele mesmo admite ser procurado para palestras dentro dos movimentos de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Amapá como referência do assunto. “Durante os anos, eu me especializei em Direito de Autodeterminação dos Povos. Talvez, assim, como professor, eu seja um dos maiores especialistas sobre isso na América Latina. Que é o quê? O estudo do significado desse direito”, conta. Um dos 27 livros que publicou (O Sul é Meu País), que estava à venda sobre uma mesa durante o encontro por R$ 25 reais, serve como referência constante nas falas dos integrantes. Na discussão sobre estratégias de disseminação da causa, impulsionar a venda da obra foi uma das questões apontadas. Um dos presentes chegou a brincar: “Bota uma Polar junto que vai vender rapidinho”, se referindo à cerveja gaúcha que usa a hipérbole do orgulho sulista em suas peças publicitárias.
Para o jornalista, professor e empresário Celso Deucher, o separatismo é pessoal. Vem daí sua terceira razão para a criação de um novo país: “É tu te sentir parte de um país. Nós não nos sentimos brasileiros. Não sei o porquê. Não sei o que é que houve. Cara, como é que tu vai me obrigar a me sentir brasileiro? Entendeste? Não tem outra nacionalidade que eu me sinta mais. Eu não me sinto alemão, não me sinto italiano, não me sinto nada: eu me sinto sulista”, revela. Assim como a maioria dos separatistas reunidos na conferência, além da geografia e mesmo a neve que, para eles, “respeita os limites geográficos” e não cai em São Paulo, o que os afasta da ideia do Brasil como nação é que o país passou a representar vergonha moral.
- Esse sentimento interno, essa coisa dentro de mim, dentro de milhões de outras pessoas, de não se sentirem brasileiros, de terem vergonha de serem brasileiros, de quando perguntada ‘De que país tu é?’, ‘Cara…meu, eu sou do Brasil, bicho. Desculpa’. Entendeste? Tu implorar desculpas pras pessoas por ser do Brasil. Cara, eu não sou daquele país lá da bunda grande, da mulata puta, do não sei o quê – eu não sou. Peraí, cara. Não é isso. Sabe, essa imagem que o Brasil faz questão de passar. Sabe, do tráfico humano, do tráfico sexual. Sabe, esse país erótico em que as menininhas com doze anos colocam os peitinhos para fora e chamam os gringos pra virem comer elas (sic). Esse país não é o meu, cara – destaca.
“Mas tu não achas que exploração sexual acontece no Sul também?”, perguntei. – Acontece, acontece muito, justamente por quê? Porque nós temos lá inclusive uma sulista, uma Xuxa da vida, que erotizou a mulheradinha desde pequenininha. Qual é o negócio? Mostra a bundinha, filha. Mostra os peitinhos, filha. Diz que tu é gostosa, filha. Tu me entendeu? Quem é que fez isso, onde é que tá a mística desse troço aí? TV e outros meios de comunicação que sempre trabalharam isso como produto nacional. Nós somos um povo querido, alegre, e nossas mulheres são as mais gostosas. Não é isso? É isso que nós vendemos lá fora”.
Rebati: ‘Tu não achas que isso também é cultura do Sul, de certa forma?” -Não, não é. Aqui, o pai olha para a filha e diz: ‘Filha, tu vai te formar’. (…) Não que os outros povos sejam: ‘Ah, os outros são vadio (sic) e nós somos trabalhador (sic)’, não é essa a questão. (…) Nós reconhecemos, o Sul reconhece, que tu só pode prosperar via trabalho. Tu não vai prosperar ficando deitadinho na rede ou se ficar coçando as partes como a gente diz, deitadinho, esperando que o governo dê alguma coisa para ti. Uma Bolsa Família, uma Bolsa-não-sei-o-quê, esse paternalismo estatal.
A Constituição de 1988 estabelece em seus princípios fundamentais, no Artigo 1º, que a República brasileira é “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. No entanto, também garante “a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação” e concede a “liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”. Os separatistas do sul se inspiram nos movimentos da Escócia, de Québec e da Catalunha. A região anexada pela Espanha no século XVIII, aliás, teve seu pedido de plebiscito negado pelo Parlamento Espanhol, mas aprovado dentro do Parlamento catalão.
Casos assim levam os separatistas brasileiros a acreditar que, tendo representação parlamentar, podem conseguir seu plebiscito: “Temos bancada evangélica, pecuarista, de direitos dos homossexuais; é disso que precisamos: uma bancada separatista”, explana Emerson Leme, professor de Londrina responsável pela Oficina de Planejamento Estratégico da conferência.
Anidria da Rocha, mãe de cinco filhos, se uniu ao movimento há dez meses e já se transformou em uma de suas maiores forças de trabalho. Em oito meses, ela recrutou mais de três mil pessoas em sua cidade, São Jerônimo, município de 22 mil habitantes na região metropolitana de Porto Alegre. Segundo Anidria, todos os filhos – exceto a caçula de dois anos – militam pela causa. Ela conta, orgulhosa, que a filha do meio, de 14 anos, chega a passar horas no telefone conversando sobre a ideia com amigos: “Eu digo pra ela: isso aí é uma independência que a gente vai buscar e que vocês vão viver. Eu e o pai de vocês não vamos viver isso aí. Vai demorar um pouco para acontecer, e a gente não vai viver. Vai ser para vocês”, salienta.
Os jovens são parcela representativa no movimento. Em uma das discussões, Deucher chega a se emocionar falando sobre isso: “Os pais nos chamam de nazistas e os filhos nos apoiam… Isso é o que vale, tirar essa ideia do chão”, destaca com a fala embargada e sendo abraçado por companheiros. Entre os jovens, está o catarinense natural de Florianópolis, Rafael Sardá, 19 anos.
Sardá começou a militar pela causa ainda com 16 anos. Descobriu o movimento pela internet, depois de uma conversa com o pai sobre por que o Sul era diferente do Brasil. O pai, no entanto, não é separatista nem participa dos eventos com o filho. Ainda na escola, Rafael enfrentava discussões com professores e colegas, alguns favoráveis, outros nem tanto. “Muitos acham que eu sou um bandido, que eu tenho que ser preso, sendo que eu não cometi nenhum crime. A gente age de acordo com a Constituição; a gente tem liberdade de pensamento, de expressão. Mas eles acham que eu sou um câncer no país, que é falta de nacionalismo meu”, conta. O lado contrário não o intimida: “Eu mandei costurar uma bandeira e carrego para os lugares. Peguei um cano de PVC, amarrei a bandeira e saí com ela pela cidade, as pessoas me perguntavam. Acho isso legal”.
E ele entrou de cabeça na causa. Na Conferência, Sardá apresentou o hino que compôs para o futuro novo país que sonha conquistar, intitulado “Um Grito no Sul do Mundo”. Segundo ele, a inspiração veio da Marselhesa e do Hino da URSS. “Eu não sou comunista, mas, durante aquele curto período de tempo, eu me torno comunista, eu quero ser comunista. Depois, eu volto ao normal”, explica para a plateia enquanto passa slides explicando a letra de sua obra. Deucher, porém, avisa que o hino não é oficial, é apenas a colaboração de um companheiro. Ele não quer que nada pareça apressado.
Deucher é um norte para os sulistas reunidos na bandeira celeste de seu grupo. Na hora em que discutem a redação dos valores e da missão, inspirados em empresas como a Coca-Cola e a Unilever, é para ele que olham, buscando uma referência. Ele calcula cada passo. Agora, diz, estão na fase de recrutar pessoas para ter força quando o momento do plebiscito chegar. Para isso, não se opõe explicitamente a nenhuma causa, a nenhum partido, a nenhuma ideia. A posição sobre as demarcações de terras indígenas, por exemplo, um dos conflitos mais negligenciados pelo poder público no Sul do país, é prova disso.
Vários integrantes desfilaram na conferência com a frase “Esta terra tem dono” estampada no lado esquerdo do peito. Alguns dizem que ela foi proclamada por Sepé Tiarajú enquanto ele era assassinado pelos espanhóis, em São Gabriel, no Rio Grande do sul. Outros, que era o grito de guerra usado pelo Cacique Guairacá em batalhas nas terras de Santa Catarina. Concordam que os índios são os donos da terra, mas chegam a dizer que a história do povo do Sul começa com a fundação dos Sete Povos das Missões. Deucher lembra que fala por si, não pelo movimento, e diz acreditar que um possível país independente saberia lidar melhor com a questão do que o Estado brasileiro atual:
“Nós temos de achar um meio de que o índio possa manter sua cultura e suas terras tradicionais. Agora, ele também tem de saber que nós estamos em um outro mundo e que, hoje, ninguém mais caça para sobreviver. Você tem o trigo, você tem o arroz, você tem o feijão. O índio do sul praticamente se aculturou. ‘Ih, cara, só porque ele se aculturou, nós vamos deixar o cara à margem da sociedade? Vamos jogar o cara na beirada da estrada e ele vai passar o resto da vida dele ali?’. Que tipo de ser humano nós somos, então? Então, nós temos de achar um meio, e isso os governantes não gostam de enfrentar, porque depende de criar ambientes que essas pessoas possam voltar a ser aquilo que elas são ou a fazer aquilo que o Cacique, aquele Cacique Mimbiá de Florianópolis, fez. Ele foi pra universidade, estudou, é advogado e está aí concorrendo como qualquer cidadão comum. Eu convivo, tenho muitos alunos indígenas. Não indígena que anda pelado por aí. Indígenas, em que tu olha para ele etnicamente e: ‘Cara, tu é um índio’. Os antepassados deles viviam no mato ali; no entanto, eles estão lá, estão estudando como qualquer outro ser humano”, frisa.
O movimento, de fato, é bastante democrático para ouvir ideias. Enquanto defende ser uma organização horizontal, elege a nova diretoria executiva – que trocou o presidente por Odilon Xavier, um gaúcho, respeitando o revezamento entre os três Estados – e acompanha a palestra “Líderes para um Sul Livre”, baseada em ensinamentos de Gandhi e Abraham Lincoln. Nela, o palestrante Ozinil Martins de Souza, também professor, abordou desde a arte de falar em público à ameaça do crescimento muçulmano no mundo. “Eu sou politicamente incorreto, tá, gente? Eu odeio o politicamente correto, é uma coisa que me agride”, esclarece entre suas considerações.
Na semana em que a Escócia votou seu plebiscito, uma rádio do Rio Grande do Sul promoveu uma enquete pedindo a opinião dos gaúchos sobre o separatismo. O resultado: 12.834 votos para o sim (74%) contra 4.487 para o não (26%). Uma petição no Avaaz pedindo o plebiscito já passou das cinco mil assinaturas. Na hora de reunir pessoas, número é prioridade. Por isso, não convém fazer inimigos.