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sábado 27 abril 2024
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Está faltando alguém na Avenida- Claudio F Vogt

ESTÁ FALTANDO ALGUÉM NA AVENIDA

 Numa tarde de sábado, fomos visitar o Cantor JOÃOSITO, líder do Conjunto JOÃOSITO E SEUS COMETAS, Tio do ADEMAR, o Gauchinho. Estavam ensaiando. Cantavam com prazer. O JOÃOSITO era compenetrado. Não falava com a piazada. O HUGO ROSSI, que tocava pandeiro, era comunicativo e leal ao irmão. Antes de seguirmos para a Curva do Rio Bonito, escutamos uma canção genial: CHALANA ( … “nas tuas águas tão serenas / vai levando o meu amor” ).

Depois, encontrei o HUGO colocando os números nas casas da Cidade. Curioso, como de costume, perguntei qual seria o número da Loja do meu Pai ( FRIDOLINO ), a Casa Santo Antônio. Ele respondeu: “999!” Logo em seguida, afixou o número. Está lá até hoje!

Era comum encontrar os ROSSI, o Paraguaio e o VERCI comprando tinta na Loja do Pai, pintando as casas da “alta sociedade”… Num dia de preguiça, quando eu voltava da aula no Colégio Santa Gema, encontrei o HUGO e seus amigos pintando a Igreja N S de Lourdes … O que mais me impressionou foi que um deles subiu na abóboda da Igreja. Não tinham medo! Estavam acostumados… Mas foi uma operação de alto risco!

Ao analisar a trajetória dos heróis do passado, temos que conhecer o mundo deles … Tudo que acontecia lá fora refletia nos nossos lares. Alguns gestores gastavam mais do que arrecadavam. Provocavam inflação, fome e desemprego. Ficávamos dependendo da Colônia … O Pai dizia, na Loja: “Quando a Colônia vai mal, tudo vai mal!” Eu não entendia de economia, mas as prateleiras vazias não sabiam mentir … Os políticos estavam bem. O Povo passava fome! Esse era o Mundo de HUGO! Os pintores não tinham trabalho. Reuniam-se, na Barbearia do RIQUETO e do TELMO, esperando, com ansiedade, que uma boa alma resolvesse pintar a casa. Hoje, o passado parece pequeno, mas, à noite, faltava luz! Preocupados com obras de grande popularidade, os governantes não investiam no futuro do BRASIL. Quando a FGF mandava uma bola nova, era motivo de festa. O meu Pai foi um dos Sarandienses que teve que pagar a conta da irresponsabilidade dos outros … Quando a Loja fechou, 150 famílias deixaram de pagar as dívidas. Ele era compreensivo, mas sofreu muito com isso…

O HUGO era assíduo: comparecia aos eventos. Era versátil: foi jogador do Torino, do Ipiranga e do Harmonia. Trabalhou como Pintor, Músico e Treinador. No outono da vida, passou a produzir a coluna Túnel do Tempo, a mais lida do Jornal. Com boa memória, colaborou para que outras gerações conhecessem as lições do passado … Resgatou nossa bonita história. Mostrou aos jovens que é possível vencer na vida …

O HUGO poderia ter produzido bem mais. Ele trabalhou em condições desfavoráveis. Apesar dos laçassos da pobreza, conquistou resultados magníficos, no campo dos valores imateriais. O entusiasmo dele era contagiante. Entendia de gente. Sabia se posicionar diante das autoridades e dos pobres. Ele acompanhava com interesse o destino de cada sobrinho e de cada jogador. Sentimental demais, começou a morrer quando o destino desmontou o mundo que havia lhe dado a felicidade … Viu, com tristeza, uma geração inteira se espalhar pelo mundo …

Ele amava o Futebol. Quando não havia dinheiro para mandar fazer camisetas, fazia com sacos de farinha … da marca Harmonia … Foi ao Estádio dos Eucaliptos ver o Pelé jogar. Antes de um treino, comentou: “Ninguém tira a bola do Pelé!” Batizou o filho primogênito com o nome de um craque do Inter da década de 50: LARRY… ( Larry Pinto de Faria ).

A obra prima do HUGO  foi montar o melhor time de futebol da história do Grande Sarandi. Nos jogos decisivos, o Estádio Pedro Demarco ficava lotado … Não cabia mais ninguém! Todos queriam ver as tabelinhas do VITOR HUGO, ITACIR, GETÚLIO e DALAVECHIA … Eles entravam com bola e tudo! O HARMONIA treinava todos os dias, ao cair da tarde. Seus jogadores eram exemplares: não cometiam faltas! Faziam sacrifícios: quando não havia ônibus, viajavam na carroceria dos caminhões, correndo uma série de riscos … Nada se conquista  sem trabalho e sacrifício!

O Técnico era agregador hábil. Reuniu todos os jogadores, titulares e reservas, na casa dele, para uma confraternização, num sábado à noite, na véspera de uma final de campeonato com o temido IPIRANGA, do Willy Schaefer. Estávamos tentando aliviar a tensão … Lá pelas tantas, o HUGO declarou: “Olha, gurizada, amanhã à noite, neste mesmo horário, estaremos todos felizes, comemorando … ou arrasados! O meu primeiro time e o dele era o HARMONIA … o segundo era o INTER …

Eu não consigo imaginar os treinos do HARMONIA sem ele … Sua voz paternal ainda ecoa na lembrança: “Não tem ninguém no rebote!” / “Cruza para trás, SABINO!” / “O VÍTOR IVO vai bater a falta!” / “Solta a bola, FLÁVIO!” / “Chuta de fora da área, ROGÉRIO!” / “QUICO, levanta a cabeça!” …

Ainda ontem, me emocionei, ao lembrar que o HUGO recebeu, de braços abertos, os negros e os pobres …Dono de um coração grandioso, contou que o Pelé, quando foi fazer teste no Corinthians, foi mandado embora … era um negro magricela! Todos ganharam uma oportunidade, inclusive eu, um branco magricela …

O tempo provou que ele estava certo: os negros SABINO, VALTER e CATARINO deram grandes emoções ao Povo Sarandiense … Tornaram-se queridos craques. Na época, pensei que o SABINO não suportaria a pressão de barulhentas torcidas… Mas eu me enganei. Ele ia para cima do lateral direito … Passava de passagem! Que saudade! Encontrei-o num supermercado. Ficamos um tempão recordando os  momentos felizes que o HARMONIA nos deu …

Um dos fatores das campanhas vitoriosas do ALVI-AZUL foi a sociabilidade do HUGO … Conversava com todos! Ele não deixava o time parado: marcava jogos e ajudava divulgá-los … Parece fácil? Mas não havia jornal na Cidade! Ele sabia a situação de cada jogador. No fundo, era sensível, tinha tato … Quando a doença levou o capitão OSVALDO ( TITUM ), ficou inconsolável. Nem subiu para o treino …

Ao visitarmos o campo do HARMONIA, para recordar, ele me disse com tristeza: “VENDERAM TUDO!” Uma legião de Sarandienses passou a infância naquele gramado! Com arquibancadas confortáveis, ali seria o nosso Maracanã! É difícil construir, sem destruir o que os outros construíram … Foi o fim de um grande sonho!  O jogo acabou!

Não deixou de ser humilde, nem nas grandes vitórias… Apesar dos ventos da adversidade , foi um homem feliz … DEUS permitiu que ele vivesse momentos maravilhosos da vida nacional  … Era saudosista. Guardava de lembrança cada carta, livro, fotografia, revista, notícia dos jogadores que treinou … Na parede da sala, mostrava com orgulho um retrato grande do Conjunto JOÃOSITO E SEUS COMETAS … que o tempo levou.

Trabalhou cercado por amigos leais, como o NILO BAUDIM, que trabalhava várias horas seguidas na copa, vendendo gasosa e defendia os jogadores do HARMONIA como se fossem seus filhos. Cercado por amigos leais, como o ADEMAR FERRONATO … que o ajudou até os 45 minutos do segundo tempo …

Não consigo imaginar os treinos do HARMONIA sem ele … Tudo bem: o Pai me ensinou que a alma não morre. Mas, para quem teve o privilégio de trabalhar com o HUGO, a Avenida nunca mais será a mesma!

Aprisionado pela doença em sua própria casa, viu os Anjos chegarem no SARANDI … Vestia uma camiseta do Internacional de Porto Alegre. Levava um crucifixo grande no peito e um pandeiro velho na mão …

“E assim ele se foi,

nem sequer se despediu.” ( 1 )

Deixou indômita saudade,

no coração da Cidade

e na curva do rio …

CLAUDIO FREDERICO VOGT

( 1 ) Canção CHALANA, do Mário Zan.




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