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Personagem Restaurativo – Rosangela Martins Aguiar

Personagem Restaurativo surgiu quando o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo – CDHEP percebeu os impactos que a formação em Justiça Restaurativa fomenta nos mais diversos lugares do Brasil. 
Pessoas que fizeram a formação e afetadas por ela, começam a mudar a sua prática no cotidiano, muitas vezes no anonimato. 
A ideia do Personagem Restaurativo é dar visibilidade para as diversas possibilidades de transformação que a Formação em Justiça Restaurativa propícia.
 Esta é a primeira de uma série do Personagem Restaurativo
“Na verdade eu não conhecia outra possibilidade. Eu achava que eles – os presos – somente entendiam a linguagem da violência. E que era somente falando a língua deles para me fazer entender. Depois de fazer a formação eu descobri que se poderia desconstruir isso”.
Rosangela Martins de Aguiar é administradora do Presídio Estadual de Sarandi, RS, desde fevereiro de 2015 e no final daquele ano terminou a graduação no curso de Direito. Faz 15 anos que é agente penitenciária da Superintendência dos Serviços Penitenciários – SUSEPE. Nos anos 2011 e 2012 participou dos cursos de Fundamentos de Justiça Restaurativa – ESPERE e Práticas de Justiça Restaurativa oferecidos pelo CDHEP em parceria com a Pastoral Carcerária. Também participou da formação sobre Processos Circulares com Kay Pranis. O curso de Fundamentos é uma adaptação da Escola de Perdão e Reconciliação – ESPERE da Fundación para la Reconciliación de Bogotá, Colômbia.
O que esta formação fez com você?
Entender que todo mundo sofreu uma violência, todo mundo é agressor e é vítima. A partir do curso eu comecei a ver que cada um tem uma história, tanto eu, agente penitenciária, quanto os presos. Na verdade eu não conhecia outra possibilidade. Eu achava que eles – os presos – somente entendiam a linguagem da violência. E que era somente falando a língua deles para me fazer entender. Depois de fazer a formação eu descobri que se poderia desconstruir isso. Mas, infelizmente alguns de meus colegas ainda entendem assim. E por isso talvez o uso da violência seja aceitável.
Eu levo este curso para toda a minha vida, muito mais do que para meu trabalho. Conseguir ver o outro com toda sua história. E com isso eu me tornei muito mais compreensiva e mais complacente em tudo. Eu sempre fui muito brava, dizem que sou muito brava. Eu não sou mais, hoje é muito difícil eu ficar brava, hoje eu consigo entender.
Recentemente tivemos uma fuga e depois Brigada Militar trouxe a pessoa de volta. Veio, sentou na minha sala. Fiquei olhando para ele todo arrebentado, (por ter caído da altura da cerca). E eu pensando, meu Deus eu poderia ficar com ódio dele, mas fui chamar a enfermeira e pedi para medicá-lo. Conversei com ele, disse: olhe isso é a diferença entre nós dois – eu penso nas consequências daquilo que faço, e você não pensa. O que ele fez é totalmente inconsequente, totalmente errado. Ai ele deu as justificativas, que está ansioso por causa da filha que faz tempo que não vê. E eu lembrei que todo mundo tem sua história, ele tem a dele e não tem como eu ficar com raiva. Não consigo nem explicar isso, o tanto que eu mudei. As pessoas que me conhecem conseguem perceber. Eu me lembro do curso, quase todo. Lembro de minhas falas quase todas. E percebo como mudei depois disso.
A maior mudança em sua função, por causa do curso qual foi?
É tanta coisa, em uma frase é difícil. O curso deu sentido para meu trabalho. Eu tinha uma frustração muito grande de fazer este trabalho cruel. Como exercício de ódio, o que era. O ódio para com os presos, ver os presos como inimigos. Com os colegas de trabalho, tinha sempre uma relação de disputa. A partir da ESPERE eu consegui ver que posso fazer coisas positivas, mesmo neste ambiente hostil. Desde então eu tenho tentado com todo meu afinco mudar as coisas. Isso me motivou por toda a minha vida. Tirou de mim aquela frustração que sentia, de que eu era uma pessoa que fazia o mal, que mantinha pessoas presas, mesmo com uma justificativa legal. Isso não deixa de ser uma violência contra ela. E eu era parte disso e continuo fazendo parte disso. Mas agora eu consigo ver com outra perspectiva a partir do curso.
Como aplica as técnicas, os círculos¹?.
Os Círculos Restaurativos são mais fáceis de aplicar do que o Círculo Vítima Ofensor. Com as pessoas que tiveram a formação em Fundamentos, nós fizemos alguns outros círculos do livro da Kay Pranis mesmo.
Fugindo um pouco do protocolo das práticas, tivemos casos de presos que brigaram. Eu conversei com um, conversei com outro, disseram que queriam conversar. Trouxe os dois, eles conversaram, se entenderam. Tinha o procedimento administrativo no qual eu coloquei que teve este encontro, que existia a vontade de se perdoar e ai eu opinei para não impor uma sanção disciplinar. Eles conseguiram se entender e realmente não brigaram mais. Mesmo sem a formalidade do círculo, teve a idéia da restauração e do perdão. Como administradora do presídio, eu tenho a autoridade de fazer parar este tipo de procedimento, impedindo que isso vá para o judiciário. Aqui temos uma média de 4 – 5 procedimentos, não de violência, mas de fugas por mês. Temos poucos casos de violência, como o caso que citei anteriormente.
Qual é o entendimento de seu serviço hoje?
Eu entendo que meu papel é mostrar que as pessoas privadas de liberdade podem ter outra linguagem, diferente daquela que eu via anterior ao curso. Eles não precisam usar a linguagem da violência. Com os cursos que aplicamos aqui no presídio, percebemos que as pessoas também ficam surpresas por descobrir que existe uma nova maneira de lidar com isso. Para mim, meu papel é esteou seria ressocializar o que se objetiva com a execução penal. Que possam descobrir uma forma de convivência sem violência. Acredito que deveria ser este o papel de todos os servidores penitenciários, que todos pudessem se entender e conviver. Isso seria a forma de trabalhar melhor não para o sistema prisional, mas melhor para a sociedade. Às vezes a gente se foca muito no sistema, para manter o sistema. A questão é além disso.
Eu sou abolicionista desde quando fiz o curso. Não acredito na pena como meio de ressocialização. Mas, juridicamente é este o contexto da sociedade que vivemos. Às vezes recebo críticas de colegas do meio jurídico que são abolicionistas e dizem que não se deve fazer nada para melhorar a prisão. Eu digo que não adianta eu ficar com meus ideais enquanto as pessoas estão sofrendo. Seria muito hipócrita eu dizer isso, ou dizer enquanto administradora que não vou mais criar vagas por que eu não acredito nisso. Enquanto as pessoas estão vivendo confinadas, numa situação degradante porque eu quero ser coerente com meu ideal.
Minha decisão para trazer o curso de Fundamentos de Justiça Restaurativa na versão da ESPERE para esta unidade aconteceu desde 2011. Fiquei encantada – pensei isso tem que acontecer com os presos e com os servidores também. Desde aquela época, eu sei também que não adianta fazer milhões de ações positivas para os presos se os servidores não estiverem inseridos nisso. Principalmente o que envolve este método de resolução de conflito que seja pacífico. Não adianta o preso ser preparado para esta metodologia e o servidor não. Desde então eu tenho tentado, organizei projetos, tive várias tentativas, mas sempre teve uma ou outra circunstância que não permitia. Ai eu fui trabalhar no presídio de Arroio dos Ratos, onde nós começamos com cursos para os servidores, mas não foi muito adiante e eu saí de lá. Mas soube que aconteceram círculos de paz com os presos. Fiquei trabalhando uns tempos em Porto Alegre, sempre ficava nisso e sempre emperrava por algo. Sempre imaginandoque se um dia eu assumisse a administração seria com Justiça Restaurativa.
Quando assumi aqui, já tinha isso em mente, sem saber muito como realizar.Mas com a visita da Irmã Imelda Jacoby, coordenadora da Pastoral Carcerária no Rio Grande do Sul, e a posterior capacitação,que foi um reforço para quem havia feito os cursos,começamos a dar a formação dentro do presídio. Minha idéia é oferecer esta formação a todos os presos e a todos os servidores também. Quero oferecer a todos os funcionários a possibilidade de participar dos cursos. Acredito que quando todos fizerem a formação, vamos sentir os resultados. Temos 197 pessoas presas hoje.
Como seria para você fazer círculos sem a experiência do curso de Fundamentos de Justiça Restaurativa?
Eu tive conversas com pessoas que fizeram formações com outras instituições e percebo que realmente elas têm uma visão meio diferente de Justiça Restaurativa. Com o curso do CDHEP você se torna mais sensível em relação às questões. Com a abordagem do círculo Vítima – Ofensor, mesmo fazendo os pré-círculos, você traz as pessoas da comunidade e resolve aquele conflito latente, mas a intervenção fica limitada àquela situação e não prepara a pessoa para os próximos conflitos. Não é abordado um conflito específico, mas se proporciona uma mudança no entendimento do conflito, e em relação ao outro. Isso para mim é a grande diferença. Sem que seja uma crítica a esta metodologia, mas uma observação.Vejo que eles usam o processo circular, a peça da fala, a cerimônia, mas trabalham com temas específicos, ele é direcionado para alguns aspectos para se ter um melhor entendimento de uma questão o que também é positiva, mas, para mim é um coadjuvante. Nós usamos os Círculos de Paz como quem já fez a formação em Fundamentos JR – ESPERE.
Quais as possibilidades dentro da política prisional, com as ferramentas que você tem hoje em relação à Justiça Restaurativa, que tipo de cenário você imagina?
Eu acredito que a combinação da Justiça Restaurativa com a ESPERE é a solução, a resposta para a violência, a criminalidade. Ela atinge todos os aspectos e todas as dificuldades que a gente tem. Desde as dificuldades de relacionamento dentro das circunstâncias desfavoráveis que eles se encontram. Vai resolver os problemas das questões ruins que fizeram eles virem até o presídio que, via de regra,são problemas familiares. Digo sempre que a instituição prisional só existe por que todas as outras instituições falharam, a começar pela família. Acho que 100% dos que vem para o sistema prisional tem falhas na instituição familiar. Eu acredito que esta formação atinge todos os níveis. Ajudar na família e no convívio social anterior. Depois que estão aqui, trata-se de ajudar as pessoas a lidar, a suportar este período, a adversidade de estar aqui preso e a se organizar para mudar atitudes e retornar para conviver na sociedade. A formação em Fundamentos JR – ESPERE deveria acontecer na entrada do presídio. Por isso eu penso em investir nesta formação,para que depois, todos que vão entrando já passem por esta experiência. A expectativa é a redução da reincidência. De tudo que eu conheço de experiência prisional, acredito que esta formação é a única, que pode oferecer a garantia de diminuir a reincidência.
Você acha que, com a falta de estrutura familiar fortalecer a pessoa presa é suficiente, se ele(a) volta para o mesmo ambiente?
É difícil se o ambiente não muda, mas com a mudança interior que o processo formativo oferece, com a mudança de ver o mundo, é possível, mas não é fácil. Eu também voltei para o mesmo lugar de trabalho e o mesmo ambiente familiar e tenho conseguido me manter fiel a isso. Claro não é 100 %. Digo isso para os colegas, quando diante de alguma dificuldade dizem que eu fiz Justiça Restaurativa e que, portanto, não posso agir assim. Ninguém é perfeito, é sempre uma construção. Tem que acreditar nisso. Estamos pensando em fazer grupos para os familiares dos presos. Tem alguns que pediram para que fosse proporcionado este curso para os familiares também. Eles também identificaram esta necessidade.
O curso Fundamentos JR – ESPERE proporciona esta visão mais ampla. Eles dizem que se tivessem sabido disso antes, teriam agido diferente com os filhos. Eles também identificam este processo quase como uma nova instrução para a vida.
Nós temos trabalhado com a prefeitura de Sarandi quanto à possibilidade de oferecer os Fundamentos JR – ESPERE para servidores municipais, principalmente para as escolas. Depois utilizar estas pessoas para criar novos grupos e assim atingir as famílias dos presos, as crianças nas escolas, os filhos deles que estão na escola.
Tem que ser muito idealista para conseguir levar adiante e fazer crescer isso, mas com a parceria do município que tem abertura para isso pode ser possível. Para acontecer isso, alguém tem que querer muito.
Em relação à vinculação jurídica, como você vê isso?
Depois que eu fiz os cursos aqui, nós fizemos um contato com INFOPEN do Estado do Rio Grande do Sul e isso agora aparece no sistema. Nós temos uma aba na qual agora aparece o Curso de Justiça Restaurativa para todas as pessoas privadas de liberdade ficarem registradas. Os presos que fizeram a formação estão registrados no INFOPEN, isso pode acrescentar no perfil do preso e é uma informação que contribui na avaliação para a progressão de pena.
Outra possibilidade é fazer com que os próprios presos ajudem como facilitadores em cursos para outros presos. Isso seria uma solução e já identificamos entre os que nós formamos alguns com esta capacidade. É uma forma também de trabalho para eles.
Em São Paulo, mais ou menos um em cada cinco presos formados querem encontrar a vítima. Isso é um desafio para nós do CDHEP, juntamente com a Pastoral Carcerária. Além do resultado da diminuição da reincidência, um resultado poderia ser círculo restaurativo Vítima Ofensor que tem alguma influência na sentença e eventualmente na remissão da pena?
A remissão de pena tem critérios específicos que podem ser trabalhados. Eu acredito que isso é possível, mas para isso temos que ter uma proximidade com o judiciário. Talvez seria interessante trabalhar a violência doméstica com os processos circulares. Pode-se pensar uma experiência, pois a vítima neste caso também tem certa autonomia que pode ter um resultado jurídico também. Anterior aos círculos tem que fazer a formação em Fundamentos JR – ESPERE. Talvez uma edição específica para agressores de violência doméstica e grupos específicos para vítimas. E depois promover os círculos restaurativos, pré-círculos, círculos.
Se você pudesse, o que iria fazer com os instrumentais que você hoje tem?
Se eu tivesse poder, eu iria descriminalizar as drogas e regulamentar o comércio das drogas, para acabar com o tráfico, por que isso seria uma medida de significado ímpar quanto a superlotação das prisões. Em relação ao processo formativo, se tivéssemos as condições, eu acredito que as pessoas deveriam fazer os Fundamentos JR – ESPERE antes de serem condenados. Far-se-ia a formação, depois os círculos vítima – ofensor e se isso não teria resultado, ai se pensaria em condenação. As cidades teriam que ter um Núcleo de Justiça Restaurativa, e as audiências de custódias poderiam ajudar nisso, talvez no modelo com o que se faz com os adolescentes e para alguns tipos de crime.
Talvez se pudesse fazer uma seleção de crimes que poderiam ser trabalhados com este atendimento, como por exemplo, a violência doméstica. Que é um crime que na primeira infração não é preso, mas passa-se por várias audiências, quem sabe seria necessário uma parceria com a Delegacia de Polícia que poderia encaminhar a pessoa para o Núcleo de Justiça Restaurativa já na primeira ocorrência. Ter também uma parceria junto com o Centro de Referência de Assistência Social – CRAS, dentro da política social do Município. E inserir esta formação dentro do sistema educacional, pois precisamos educar para a paz. Como temos a violência dentro de nós, e algumas pessoas acreditam que os presos têm que ser mortos, isso só pode mudar pela educação.
[1] Círculos Restaurativos: metodologia que oferece um instrumento de mudança da percepção a partir de processos circulares de construção de paz.