Psicóloga de Bernardo diz que menino era “órfão de pai vivo” e primo do médico ouviu do preso que “era tão vítima” quanto o filho
O terceiro dia de julgamento de Leandro Boldrini, médico acusado de participar da morte do próprio filho, Bernardo Boldrini, em mais um dia de ausência do réu, começou na manhã desta quarta-feira com o depoimento da psicóloga Ariane Schmitt. Seu testemunho, recheado de frases fortes, trouxe novas revelações sobre como era o convívio do menino com o pai. “Órfão é a palavra mais feia do dicionário. Bernardo era órfão, também, de pai vivo”, lamentou.
Conforme Ariane, ela começou a ter sessões com Bernardo logo após o falecimento da mãe, Odilaine Uglione. “Bernardo tinha um luto mal resolvido da mãe, era recente. Ele estava com problemas de aprendizagem, estava disperso. Fizemos algumas sessões antes da tragédia”, disse a psicóloga aposentada, que acrescentou estar no júri “como cidadã”.
A psicóloga chegou a notar que Bernardo, por vezes, comparecia às sessões em um estado incomum para uma criança. “Ele compareceu a algumas sessões dopado, com dificuldade para falar. Febril também”. Sobre um vídeo apresentado no júri ainda nessa segunda-feira, ela comentou sobre as “60 gotinhas” que o pai sugere dar ao filho durante a gravação. “Coca-Cola que não é”, diz a profissional.
Percebia-se a falta de interesse da família. “Falei com os dois (Leandro e Graciele), os alertei sobre os problemas. No primeiro atendimento, o Bernardo veio três ou quatro vezes. Na segunda vez, foram outras três sessões. Aí, o menino já vinha sozinho. Ninguém nem o trazia”, relata.
Amor pelo pai
Apesar do descaso e da distância, Ariane Schmitt falou que Bernardo amava o pai. “O quarto de Bernardo era triste, azul marinho, escuro. Chocante a diferença entre um profissional estudado e reconhecido e um pai omisso. Se fosse um ignorante, poderíamos entender. O menino queria ser médico, que nem Boldrini. Amava o pai”, resumiu.
De acordo com a psicóloga, Bernardo, enquanto clamava por atenção, também lutava para se alimentar. “Perguntado, uma vez, sobre que personagem ele seria, me respondia que não era nenhum, porque ninguém lhe contava histórias. Ele amava animais, queria ter um aquário. Mas mal comia, tinha que mendigar por merenda. Acaba nem se preocupando com a higiene pessoal e boas roupas”, explicou.
Ariane soube sobre o sumiço de Bernardo pela Internet, pois estava no exterior. “Pedi para o meu esposo visitar Boldrini. Eles operaram juntos, tinham um vínculo. Chegou comovido e foi mal interpretado: ouviu de Leandro, ‘você também veio comprar órgãos?’. Foi chocante”.
Tratamento “normal”
Luiz Omar Gomes Pinto, que prestou serrviços para Boldrini, foi a próxima testemunha a falar. Arrolado inicialmente pela defesa, que desistiu de seu depoimento, ele foi mantido no júri a pedido da promotoria. “Tratamento entre Leandro e o filho era normal. Chamava a atenção dele como um pai qualquer faz”. A ex-esposa de Pinto trabalhou na casa de Boldrini. “O menino contou para ela que a madrasta havia tentado sufocar o Bernardo com uma almofada”.
Para não sofrer represálias, o depoente achou melhor não se intrometer. “Falei para minha esposa que denunciasse o sufocamento no Ministério Público, mas evitamos fazer. Poderia ocorrer um processo contra a gente”, relembra. Pinto conta que, depois que Odilaine faleceu, a ex-esposa já não trabalhava na casa dos Boldrini. “Antes, Bernardo ia dormir lá em casa, levado pela mãe. Depois, da morte dela, o menino foi proibido pea madrasta de frequentar a nossa casa”, afirma.
Quando Bernardo sumiu, Luiz Omar Pinto, na hora, já pensou o pior. “Eu disse, ‘esquece’. Todo mundo gostava dele, era filho de um médico conhecido. Tinha alguma coisa errada”, lembrou a testemunha.
O grampo de Marlise
O turno da tarde serviu para os depoimentos das testemunhas de defesa restantes. Marlise Cecília Renz, ex-funcionária de Boldrini, teceu muitas críticas à madrasta de Bernardo. “O Leandro se escorou na parede e me contou sobre intimação de que teria que vir até o Fórum porque o Bernardo tinha procurado a Justiça para não conviver com a família. E me disse ‘eu tive uma mulher e essa (Graciele) é louca também”, recorda.
“Não sei se o Leandro era dominado por Graciele, mas a Kelly era sabida na história que ela queria gerar. Quando o fato aconteceu, as pessoas me cobravam que eu tivesse que ajudar mais o Bernardo. Ele era magrinho, pequenininho”, se emociona Marlise, que acreditava ter seu telefone grampeado até hoje, algo que nunca ocorreu, como esclareceu a juíza Sucilene Engler.
“Porque eu trabalhava com eles, as pessoas achavam que eu sabia de tudo e poderia fazer alguma coisa”, disse, às lágrimas. “Como a Graciele disse que queria matar o Bernardo e ele morreu, fiquei com medo porque tinha ido na delegacia”, revela a testemunha.
Curtos depoimentos
Bastante nervosa, a ex-babá de Bernardo, Lore Heller, começou o depoimento dizendo que “Leandro era um bom pai”, no tempo em que trabalhou na casa da família. Alegando ter pouca memória dos ocorridos e estar com problemas de saúde, a testemunha foi dispensada com parcos minutos de testemunho. Na sequência, a ex-diretora do Hospital de Três Passos, Rosângela Pinheiro, foi ouvida, em uma breve participação.
“Tão vítima quanto Bernardo”
O primo de Leandro Boldrini, Andrigo Rebelato, encerrou o rol de testemunhas arroladas pela defesa. O depoente, que é advogado, representa Leandro em uma causa cível e em outra patrimonial, explanou sobre a proximidade com o réu. “Tivemos convivências muito próximas. Se pegar uma foto do meu aniversário de um ano, ele estava lá”, conta.
Rebelato revela o que falou com Boldrini, já preso. Perguntando se o médico tinha alguma culpa na morte do filho, ouviu: ‘Não! Sou inocente, tão vítima quanto Bernardo'”, reproduz a testemunha.
A promotoria mostrou a relação de visitas ao presidiário Boldrini e o nome do primo não está como visitante, porque Rebelato se identifica como advogado do médico para acessar a penitenciária. Em um áudio reproduzido pela acusação, Andrigo fala com o irmão de Leandro, Wilson, orientando a resgatar um valor em dinheiro do banco antes que os bens do réu fossem bloqueados.
Áudios de telefonemas em que o depoente aparece foram mostrados pelo promotoria. O MP acredita que a testemunha possa ter participado de combinações da defesa para isentar o réu da culpa pelo crime.
Último dia?
Diferente dos últimos dois dias, é esperada a presença de Boldrini no júri, nesta quinta-feira, até porque a próxima etapa do processo é o interrogatório do réu. Ele poderá responder às perguntas ou se manter em silêncio.
Em seguida, haverá a fase dos debates orais, momento em que acusação e defesa apresentarão suas teses aos jurados. Cada parte terá 1h30min para fazer a sua explanação. Há ainda 1 hora de réplica (para a acusação) e o mesmo tempo de tréplica (para a defesa). Totalizando cinco horas de duração dos debates.
Na sequência, os jurados serão indagados se estão prontos para decidir, quando passarão a uma sala privada para, finalmente, responder a um questionário com diversos quesitos. Cada uma das perguntas deverá ser respondida com “sim” ou “não”. Maioria simples de votos define a absolvição ou culpa em cada quesito. A partir da decisão dos jurados, a juíza Sucilene estabelecerá a pena (em caso de culpa) ou determinará a soltura imediata do réu (em caso de absolvição).
Correio do Povo