“Talvez para quem esteja fora da favela seja difícil entender um pouco da seriedade, da gravidade de como as coisas estão acontecendo. Mas, a quantidade de pessoas, fora pessoas feridas, dentro das suas casas, casas destruídas, casas alvejadas, todo tipo de situação, a gente está falando da quantidade de crianças que estão tendo ataques de nervo, tremedeira, sabe?”, disse.
Ele contou estar recebendo muitas mensagens e ligações de moradores. “O nível de pedido de socorro eu ainda não consegui absorver. Da vasta quantidade de casos diferentes, que vai desde “meu vizinho tomou um tiro dentro de casa” até “a minha criança está tendo um ataque epilético, e eu não sei o que fazer porque o tiroteio é aqui, na porta””, relatou.
Morador do Complexo do Alemão há 36 anos, Santiago é conhecido pelo coletivo Papo Reto e já compartilhou sobre a vivência nas favelas cariocas em um painel da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova Iorque. Em suas redes sociais, relatou nunca ter visto nada semelhante: “A gente está tentando entender isso tudo. E, também, sobreviver, porque somos moradores.”
Na operação desta terça, cerca de 2,5 mil policiais civis e militares participaram da ofensiva. No Alemão e na Penha, pelo menos 87 escolas tiveram as atividades afetadas – 48 nem chegaram a abrir. O total de alunos impactados foi de 29 mil. O Comando Vermelho reagiu e lançou bombas por meio de drones, o que transformou a região em um cenário de guerra, com reflexos em importantes vias da cidade, como a Avenida Brasil e a Linha Amarela.
Além de atingir o CV e o narcotráfico, a operação também visou a apreensão de armamento usado pela facção criminosa e, até a última atualização anunciada pelo governador Cláudio Castro (PL), 93 fuzis haviam sido apreendidos pelas forças policiais.
Enquanto relatava a situação no Complexo do Alemão, o líder comunitário Raull Santiago contou ouvir diversas trocas de tiros e ver caveirões pela rua. “Quem está na ponta está vendo os 60 corpos, as crianças estão vendo os 60 corpos”, disse. “Fora a quantidade de pessoas baleadas, fora a quantidade de áreas destruídas, fora saber que você não está tendo aula, que não conseguiu trabalhar, que não conseguiu dar um passo digno de direito por conta de todo esse processo que está rolando”, completou.
Mais de 110 mil pessoas moram nas regiões dos complexos do Alemão e da Penha, alvos da megaoperação policial contra o Comando Vermelho (CV) na zona norte do Rio nesta terça-feira, 28, que deixou 64 mortos, sendo quatro policiais. Foi a ação mais letal da história do Estado.
De acordo com dados da Prefeitura, com base no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 54 mil pessoas vivem no conjunto de favelas que formam o Complexo do Alemão. Já na Penha, são 58.516 moradores (esse número é referente a todo o bairro, e não apenas ao complexo de favelas).
A geografia acidentada do Complexo do Alemão facilitou a concentração de criminosos do Comando Vermelho no local e, ao longo das últimas décadas, a polícia já fez várias incursões na área. Em 2002, por exemplo, a morte do jornalista Tim Lopes levou à prisão e à caça do traficante Elias Maluco. Em 2007, o Alemão recebeu uma operação policial que mobilizou 1.350 agentes e deixou 19 mortos.
Três anos depois, 2,6 mil agentes, entre policiais militares, civis, federais e homens das Forças Armadas, participaram da invasão ao Alemão após uma onda de violência no Rio em uma reação às Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
Vias interditadas
A ação desta terça-feira repetiu cenas de guerras e expôs o poder crescente do crime organizado no País e as dificuldades do poder público de reprimir o narcotráfico, com efeitos violentos para os moradores das comunidades pobres.
A Prefeitura do Rio anunciou que a cidade entrou em Estágio 2, devido a ocorrências policiais que interditam de forma intermitente ruas da zona norte, oeste e sudoeste da capital fluminense.
Esse estágio de risco é acionado, dentro dos estágios operacionais da cidade, quando há ocorrências “de alto impacto” por conta “de um evento previsto ou a partir da análise de dados provenientes de especialistas”; são ocorrências descritas com “elevado potencial de agravamento”.