Agressividade nas redes sociais demonstra despolitização e escalada de ânimos que pode levar à violência
Divisórias tentam evitar confrontos | Foto: Antonio Cruz/ABr/CP
Um muro de metal divide ao meio a Esplanada dos Ministérios, em Brasília. A divisão em frente a um dos principais símbolos nacionais mostra que a política ultrapassou uma linha perigosa e entrou no patamar da intolerância. Às vésperas da votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, um metafórico muro divide também o país, tensionando o ambiente, seja na esfera pública ou até mesmo as conversas de família.
Com o Brasil pressionado pela crise econômica e bombardeado por denúncias de corrupção, o clima quente nas manifestações no Brasil extravasou em atos de violência. Neste campo minado, a Psicologia vê a internet potencializando frustrações e desilusões para o mundo real. A Ciência Política alerta para a falsa “politização” num cenário de falência dos partidos políticos e instituições. A Comunicação enxerga perigosas “bolhas” de concordância para silenciar o contrário, aumentando o ódio contra o “outro lado”.
Agora faltam poucos dias para a votação da Câmara sobre o impeachment de Dilma. O temor de uma escalada ainda maior de agressões gerou o muro de metal e mobiliza um aparato com 4 mil policiais para tentar manter a integridade dos que pretendem defender suas posições em Brasília. Nesse cenário, o psicanalista Leonardo Della Pasqua alerta para a influência do discurso de ódio nas multidões. “Existem pessoas que inflamam a massa para o uso da violência. Num ambiente de grandes proporções, as pessoas podem ser mais sugestionáveis e, como os ânimos são de indignação e intolerância, o terreno para a violência física está aberto”, aponta. “Onde não há muito espaço para o pensamento, parte-se para a ação. A violência é uma clara expressão dessa ideia.”
Reflexo da politização?
Della Pasqua contextualiza a falta de reflexão como o lado extremo da “intolerância natural” que todos possuem a algumas ideias diferentes. “Quando o ódio atinge determinados níveis de intensidade, o raciocínio e o juízo crítico ficam prejudicados, sendo intolerável suportar uma ideia que provenha de um grupo ou uma ideologia”, explica. Para um debate verdadeiro, ele salienta a necessidade de afastar essa “intensidade” de ambos os lados. “Nos casos onde há troca de ideias, as emoções estão menos intensas e perturbadoras. Neste caso, existe um possível distanciamento para questionar e debater, mesmo quando há evidente discordância ideológica.”
Mas o “filtro” das redes sociais é mais um obstáculo para o estímulo à troca de ideias, conforme detalha a jornalista e pesquisadora Raquel Recuero. A intolerância política, associada aos algoritmos que direcionam conteúdos do Facebook “faz com que se criem ‘bolhas’ de concordância e se silenciem os discursos contrários”. Raquel salienta que “esse silenciamento é também separador, na medida em que cria mais animosidade entre as pessoas, o que aumenta o ódio contra o ‘outro lado'”. O resultado é que, quanto mais conteúdo agressivo circula em determinado grupo, uma quantidade cada vez maior desse material é repercutido entre as mesmas pessoas.
Para a cientista Céli Regina, essa é a propagação de muitos discursos vazios. “Qual a proposta que junta milhões de pessoas nas ruas? É a destruição. Se perguntar, vão dizer: ‘Não quero a Dilma’. Isso é muito pouco”, pondera. “Isso de dizer que não quer a Dilma e o PT. Mas também já vaiaram Aecio, Alckmin, Martha Suplicy. Então é um momento de despolitização, pois não tem debate, discussão, alguém conversando com alguém para postar uma ideia”, frisa ela.
Falta de representatividade
O debate definha ainda mais, segundo a especialista da Ufrgs, pela falta de representatividade tanto no Executivo quanto no Legislativo. “Acredito que os partidos políticos estão neste momento sendo completamente incapazes de fazer aquilo para qual existem: realizar o elo entre o mundo político e a vida das pessoas”, argumenta. “Praticamente desapareceram, estão lá em Brasília lutando por sobrevivência enquanto a massa está numa arena romana, para ver quem vai acabar com o outro.”
Dentro deste ambiente, ela lembra que o Judiciário ascendeu como “salvador” no imaginário da população, ainda na época do julgamento do mensalão. “Houve uma certa crença desde o mensalão e do Joaquim Barbosa de que o Judiciário seria a salvação. O que é um engano completo. O país precisa ter um judiciário decente, sério. Como é o norte-americano: completamente discreto”, opina, lembrando que nos EUA sequer é permitido fazer imagens dos magistrados, enquanto o Brasil transmite as sessões em TV aberta. A partir deste clamor e exposição, Céli Regina acredita que “surge uma figura como o juiz Sérgio Moro, que é a absoluta negação do que deve ser o sistema judiciário: discrição e com uma forma de trabalhar absolutamente dentro da lei”. “Mas a possibilidade de surgir um Moro e o destaque do STF deixa em evidência o fracasso do Legislativo. Virou um mercado público de venda e compra de emendas, cargos, votos etc.”
Uma manifestação pública em específico preocupa a cientista. “O que mais define a gravidade do momento político brasileiro é o vídeo que está circulando da jurista Janaína Paschoal, professora de direito da USP e signatária do impeachment”, alerta. “Todos os brasileiros deveriam ver aquele ato, para testemunhar o nível que chegou a vida política do país. A partir dali, temos que dar a volta. Aquilo é o nível mais baixo que a política e o judiciário podem chegar.”
Della Pasqua reforça que, a descrença com as instituições, aumenta a pressão sobre o ambiente de ódio. “Nesses casos, não é tão importante a justificativa dos atos em si – que são muito frágeis -, mas a descarga de agressividade expressa em todas essas ações”, afirma. “Estamos em um período onde devemos lidar com muitas frustrações e desilusões. É um campo propício para projeções, onde o outro que pensa diferente de mim torna-se meu inimigo e deve ser afastado ou destruído.” Ele sublinha a necessidade de manter distância da intensidade emocional se for debater política. Mas, se não for possível, aconselha: “Talvez seja o caso de evitar debates sobre política e priorizar manter as relações que são importantes em nossas vidas”.
Correio do Povo