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sexta-feira 29 março 2024
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Campanha incentiva adoção de crianças de diferentes perfis no RS

Estado contabiliza 5,2 mil candidatos a adotantes habilitados pela Justiça

Mariana, hoje com 11 anos, foi adotada aos nove por Flávio Dutra e Viviane Wildner | Foto: Fabiano do Amaral

Mariana, hoje com 11 anos, foi adotada aos nove por Flávio Dutra e Viviane Wildner | Foto: Fabiano do Amaral

A criança, que nesta matéria vamos chamar de Sofia (nome fictício), foi encontrada em um carrinho de papeleiro, completamente imunda, com apenas dez meses de vida, em fevereiro de 2011. A mãe achou que a diligência do Conselho Tutelar fosse da Polícia e temendo ser presa, saiu correndo, deixando a criança para trás. Mais tarde, veio à tona o motivo: ela estava envolvida com o tráfico de drogas, por isso temia a presença de uma viatura. Quando a pequena Sofia chegou ao abrigo, foi constatado que ela era portadora do vírus HIV.

“Desde o início sabíamos que ela tinha HIV e isso nunca foi um problema”, lembra o administrador de empresas, um dos pais que adotaram a pequena Sofia. Ele e um professor formam um casal homoafetivo, pais adotivos da menina. Com o objetivo de preservar a individualidade e a privacidade da criança, eles decidiram não falar abertamente sobre o assunto, pois têm medo que ela sofra com preconceitos e, infelizmente, eles têm razão. Quando questionada sobre como é ter dois pais, Sofia, que chegou à casa deles perto dos dois anos de idade e hoje tem seis, diz que “nasceu do coração” dos dois. E, segundo ela, é muito bom “porque ninguém tem dois pais, só eu”.

Eles formalizaram a união estável há nove anos e moram juntos há oito. Cada um deles tinha vontade de ser pai. As bisavós de Sofia estão sempre presentes em todos os aniversários. Aprovam a adoção e também a união entre os dois. Na escola, a questão é tratada com muita naturalidade tanto pelos colegas como pelos professores.

Ela ainda mantém contato com as amigas que fez no abrigo e com uma das cuidadoras que a acolheu desde o primeiro momento e ficou com ela durante um ano. “É uma mãe para ela. Criamos um vínculo. Ela faz parte da nossa história”, avaliou um dos pais sobre o papel da cuidadora na criação de Sofia. Em casa, o assunto é tratado com cautela e sinceridade: “Obviamente não se dá muita explicação para a criança, não precisa, mas é importante falar o básico”.

Segundo ele, na escola é realizado um acompanhamento psicológico “bem importante”. O processo de aproximação entre eles e a filha durou cerca de um mês. “Não aguentava mais pegá-la de manhã e devolvê-la à noite”, lembra o administrador de empresas sobre o período. “Ela não queria sair do meu carro e entrar no abrigo. Começamos a sofrer. A assistente social tinha que tirar ela à força.”

A conta que não fecha

Histórias como a de Sofia retratam uma dura realidade no Rio Grande do Sul. O Estado tem atualmente 600 crianças e adolescentes disponíveis para adoção e mais de 5,2 mil candidatos a adotantes já habilitados pela Justiça. A conta que não fecha retrata que a maioria procura por uma criança saudável de até 3 anos. De acordo com dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), das 399 crianças e adolescentes que estão em processo de adoção, 214 (53,64%) têm entre 0 e 3 anos. Já crianças com mais de 10 anos, grupos de irmãos e jovens portadores ou não de alguma deficiência representam a grande maioria do cadastro que ainda aguarda na fila: 543 têm 10 anos ou mais (90,5%); 411 possuem irmãos (68.5%) e 217 têm problemas de saúde (36,17%).

Com o objetivo de chamar atenção da sociedade para este quadro, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul lançou a campanha “Deixa o Amor te Surpreender”. O objetivo é incentivar a adoção de crianças com mais de 10 anos, adolescentes, grupos de irmãos e jovens com deficiência.

Além da campanha, a Coordenadoria da Infância e Juventude do Rio Grande do Sul está desenvolvendo outros projetos para propiciar a convivência familiar nas diversas comarcas do Estado, entre elas estão o programa “Apadrinhar”, de apadrinhamento afetivo, o “Preparação para Adoção”, de sistematização dos encontros preparatórios com os candidatos à adoção, o “Entrega Responsável”, com orientações para mães e gestantes que manifestam o interesse em entregar seu filho em adoção, e o “Busca Se(R)”, de ações de busca ativa para a localização de famílias para as crianças e adolescentes que não tiveram possibilidades de adoção imediata pelo Cadastro Nacional de Adoção e que ainda aguardam um lar.

Seis anos de espera 

A história do técnico em eletrônica Flávio Dutra Lencina, 36 anos, e da dona de casa Viviane Wildner Lencina, 37 anos, é um pouco diferente. Eles adotaram Mariana Borba da Silva com nove anos. O nome ainda não foi alterado. Segundo Viviane, os registros devem sair até o final deste ano. Agora, Mariana tem 11 anos. Ela chegou à casa nova em agosto de 2015, cerca de um mês após os pais serem considerados habilitados e entrarem para o CNA. O perfil esperado por Flávio e Viviane era o de duas meninas, de zero a dez anos, sem nenhuma restrição.

Logo eles foram chamados pelo Foro de Porto Alegre para conhecer Mariana. Flávio disse que foi uma semana de angústia, até conseguir conhecê-la pessoalmente. “Quase encontramos Mariana no Dia dos Pais, mas foi uma semana depois. Queríamos que fosse no dia”, disse Flávio. Eles foram até a instituição onde a menina morava, no bairro Sarandi, para conhecê-la durante uma hora de encontro.

“Não dormi nada esse mês inteiro. Acho que emagreci uns três quilos. O medo de ser pai e mãe, será que a gente vai dar conta?”, se recorda Viviane. Mariana, no entanto, afastou qualquer insegurança no primeiro encontro: “Fiquei muito feliz”, diz. “Foi emocionante, eu chorei”, afirma Viviane. Ela estava no abrigo desde os quatro anos e já tinha padrinhos afetivos, com os quais continua mantendo contato. De acordo com Viviane, Mariana gostava de todas as frutas, todas as comidas e até salada! “É só propaganda? Que nada, era tudo verdade”, contou Flávio.

Durante uma semana eles se encontraram todos os dias. Passavam o dia juntos e, no final da tarde, precisavam devolver a menina ao abrigo. “Era complicado levá-la de volta”, contou Viviane. “Logo ela nos chamou de pai e mãe”, lembra. A adaptação pode levar entre 20 e 30 dias, mas no caso deles, bastaram sete para todos estarem sob o mesmo teto. “Ela queria uma família e a gente queria uma filha, foi uma combinação que deu certo”, resume Flávio. Em casa, os pais conversam abertamente sobre tudo.

O perfil foi estudado e construído por Flávio e Viviane. “Inicialmente era bebê, como todo mundo”, reconhece Viviane. Segundo ela, os grupos de adoção ajudaram bastante na construção deste novo perfil. Quando o processo de adoção de Mariana for finalizado, o casal pode dar andamento à adoção da segunda menina. Em relação às crianças mais velhas, o senso comum trata como se fosse mais difícil de lidar, mas Flávio diz que isso depende. “Não tem regra, não existe”, diz o pai. “Ela tem demandas, tem necessidades, como se fosse um bebê, às vezes. Ela quer ter aquela experiência de família”, comentou Viviane. “Tu és adotada, as pessoas devem saber, não tem que ter vergonha, tem que ter orgulho”, diz a mãe para a filha. “O que importa é que a gente é feliz e dane-se o que os outros falam”, completa. “O importante é que eu sou feliz”, resume Mariana.

Foto: Mauro Schaefer

Temos que vencer o preconceito 

O caso da enfermeira Cíntia Furcht Fleck, de 43 anos e do autônomo Luciano Luís Fleck, de 37 anos, é realmente uma história de filme. O casal estava na fila de espera para adoção, quando foi surpreendido pelo pequeno Théo, um recém-nascido portador de Síndrome de Down. A mãe o deixou ainda no hospital, o que facilitou o processo de adoção. “Em 48 horas conseguimos a guarda do Théo. Ele chegou na nossa casa com 17 dias de vida”, relatou Cíntia, que ficou extremamente envolvida com o pequeno, quando o viu no berço do hospital.

“A gente queria uma criança sem nenhum déficit intelectual, nenhum problema mental. Não por preconceito, mas a gente não estava preparado. Aí nasceu o Théo, com Síndrome de Down. A gente teve que mudar o perfil e hoje damos força para aqueles que querem ser pais com a nossa presença no grupo de adoção”, relatou Cíntia.

O casal tem dois filhos biológicos, Matheus, 22 anos, e Luísa, 16 anos. Conforme Cíntia, a família inteira abraçou o mais novo integrante da família. Sobre a Síndrome de Down, Cíntia explica que existe sim diferença no desenvolvimento do filho mas, segundo ela, o Théo tem o tempo dele e a família está o tempo inteiro estimulando e praticando atividades com ele, que está sendo criado da mesma forma que os irmãos mais velhos. “Temos que vencer o preconceito e conhecer as realidades. O amor supera todas as dificuldades”, reforçou Cíntia, que já está pensando em encaminhar outra adoção.

Correio do Povo




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